Por algo provocadora que pareça para certos temperamentos demasiado apaixonados, a questão deve, no entanto, ser tranqüilamente examinada. Mas acima de sua conotação polêmica, ela abre em efeito o único debate do grau de autoridade dos textos promulgados durante o Concílio Vaticano II. A equação simplista que deduziria um grau supremo da autoridade pelo simples fato dos textos emanarem da maior assembléia conciliar nunca vista, não faz sentido. Em efeito é notório que um concílio não tem outra autoridade que aquela que o Papa conferiu a ele, sequer tacitamente. Ora, na matéria, Paulo VI foi formal: “Dado o caráter pastoral do Concílio, ele evitou pronunciar de uma maneira extraordinária algum dogma, não comportando a nota de infalibilidade”. (Audiência de 12/01/1966). Isso significa então que no Concílio, a Igreja não quis utilizar seu grau de suprema autoridade.

Um Concílio não infalível

Em efeito, tanto a aproximação pastoral querida por este concílio como seu estilo de redação – distante tanto das definições que de toda condenação-, não podia senão sublevar a questão da autoridade das constituições e decretos promulgados. Não questionemos a legitimidade de uma tal interrogação. Os padres conciliares eles mesmos foram obrigados a se fazerem esta pergunta, e isto no momento preciso onde se pedia para eles assinarem o texto central do Concílio, verdadeira chave indispensável à coesão do ensinamento conciliar: a constituição sobre a Igreja, declarada “dogmática” precisamente para conferir-lhe mais peso. Perplexos diante da singularidade de este texto, eles foram numerosos a interrogar a comissão central a este respeito, donde a nota anexada à Constituição dizia: “conforme ao uso dos concílios e ao objetivo pastoral do Concilio atual, este não definiu como obrigatórios para a Igreja senão apenas os pontos que dizem respeito à fé e à moral, que sejam claramente definidos como tais.” Ora, sabemos que estes pontos são, para assim falar, inexistentes. João XXIII os excluiu da ordem do dia, e Paulo VI dizia há um instante quanto este desejo foi respeitado pelos padres conciliares.

Uma primeira constatação deve, pois, ser admitida por toda reta consciência: se os ensinamentos do Vaticano II não pertencem às tenenda (verdades que “devem ser admitidas” de fé católica), eles não podem ser honestamente utilizados como critérios sine qua non da catolicidade. Empunhá-los como uma espada de dois gumes definindo os limites da comunhão católica demonstra então uma escolha ideológica, ou até revolucionária por alguns. Se Paulo VI, na audiência precitada, acreditou poder falar ao seu respeito de um magistério “ordinário supremo”, não pode ser, aos olhos de um teólogo, em razão do grau supremo de autoridade engajada, mas do só feito que estes ensinamentos emanam daqueles que, em direito, têm a capacidade de ensinar com este grau supremo. A distinção foi claramente posta por Dom Delhaye, no tempo em que ele era secretário da comissão teológica internacional: “uma coisa é possuir uma autoridade, outra coisa é exercê-la ou não, em razão, por exemplo neste caso, de uma certa concepção da pastoral.” (Vaticano II, dicionário teológico católico, Índices, col. 4330).

Textos contingentes, logo reformáveis.

Em um discurso célebre (discurso à cúria de 22/12/05), Bento XVI trás à luz um esclarecimento à nossa reflexão. Ele anunciou então um novo princípio hermenêutico (um novo princípio de interpretação), indispensável à justa apreensão dos textos do Vaticano II: “As decisões da Igreja no que atinge os fatos contingentes [devem] necessariamente ser elas mesmas contingentes”. Um tal princípio, para ser aplicado ao nosso sujeito, deve em primeiro lugar ser precisado. É evidente que ele não pode ser empregado sem discernimento, um só exemplo o provará suficientemente. Se a Igreja precisasse se pronunciar sobre um fato contingente contido no Evangelho -a verdade de um milagre, por exemplo-, Ela não o faria de nenhuma maneira contingente. Assim o papa precisa imediatamente o que ele entende por “fato contingente”: trata-se de uma “realidade determinada em si cambiante”. O caso do milagre, e mais geralmente do fato cumprido, fica, portanto, excluído. Mas, este esclarecimento não é suficiente ele só. É importante acrescentar que a decisão da Igreja não poderá ser dita contingente se não for na medida em que ela diz respeito precisamente ao aspecto mutante desta realidade determinada, mas não quando ela edita os princípios que permitem julgar a realidade concreta, por definição contingente. O primeiro caso pertence, em efeito, ao ato prudencial próprio ao governo -evidentemente contingente-, enquanto o enunciado dos princípios, -assim como a denúncia dos seus contrários-, é próprio ao Magistério contanto que ele garanta as verdades eternas. Encontramo-nos então numa matéria em que, longe de ser contingente e mutável, a asserção tange à conservação e exposição fiel da Revelação transmitida pelos apóstolos.

Feitas essas precisões, retomemos o texto de Bento XVI. Alguns gostariam sem dúvida de aplicar o princípio de hermenêutica do papa a certos documentos anteriores ao Vaticano II, por exemplo, Quanta cura ou o Syllabus, Quas primas ou Mortalium animos. Porém, nada indica que estes textos sejam simplesmente intervenções prudenciais. O contrário. Cada uma destas paginas revela os Papas preocupados de lembrar -e de defender com a mesma energia-, a verdade católica. Estamos no nível dos princípios, no domínio próprio do Magistério. Reduzir tais textos ao grau de contingências mutantes seria fazer prova de relativismo histórico.

Se há um texto ao qual seria necessário reconhecer uma tal contingência, é claramente, da opinião mesma de Bento XVI, o do Vaticano II. No seu discurso, o papa alemão não enuncia seu princípio de interpretação senão depois de ter escrito, com uma insistência surpreendente, o aspecto especificamente contingente que o concílio Vaticano II reconhece ter assumido. Sua tarefa fundamental consistia efetivamente em “determinar de maneira nova a relação entre a Igreja e a época moderna”, permitindo a Igreja de se dizer ela mesma “conforme as exigências do pensamento moderno”, segundo a expressão de João XXIII.

Dali as três missões do Concílio: “definir de maneira nova a relação entre a Fé e a ciências modernas […] Em segundo lugar, era preciso definir de maneira nova as relações entre a Igreja e o Estado moderno […] Isto estava ligado, em terceiro lugar, de maneira mais geral com o problema da tolerância religiosa –uma pergunta que exigia uma nova definição das relações entre a fé cristã e as religiões do mundo. Em particular, […] era preciso avaliar e definir de maneira nova as relações entre a Igreja e a fé de Israel”. O campo semântico utilizado pelo papa é por si só expressivo dessa contingência. Em algumas linhas, o adjetivo “novo” volta 13 vezes para descrever o ensinamento do concílio num contexto “moderno”, – palavra utilizada 9 vezes. É somente então que o papa enuncia seu princípio interpretativo: “as decisões da Igreja no que concerne aos fatos contingentes (devem) necessariamente ser elas mesmas contingentes”.

Tal é o caso do Vaticano II, cujas decisões e decretos são conseqüentemente reformáveis.

Por uma sã crítica do Concílio

Antes mesmo que fosse promulgado, o concílio Vaticano II foi reconhecido como não infalível pelo próprio texto conciliar (nota anexa a Lumen Gentium), e depois por Paulo VI (discurso de 12 de janeiro de 1966). Quarenta anos mais tarde, Bento XVI dando uma primeira razão no seu discurso oficial, ainda que de maneira parcialmente implícita: um concílio, cujo objetivo primeiro e confessado foi de se adaptar ao que este mundo presente tem de contingente, não pode senão ser ele mesmo contingente. Contingente, logo reformável, por uma reforma que será ela mesma o fruto de uma crítica sã.

Precisamos enunciar os princípios de uma tal crítica, a fim de que ela seja construtiva. Sem pretender aqui a nenhuma exaustividade, nós citaremos apenas dois desses princípios, que aparecem com evidência.

O primeiro se encontra bem evidentemente no critério da Tradição. Se a palavra está ausente do discurso de Bento XVI, a idéia quanto a ela é expressa, mesmo se de forma negativa: a hermenêutica que constituiria uma ruptura com a Igreja pré-conciliar não é aceitável. Dito de outra maneira, toda hermenêutica -todo olhar crítico-, sobre os textos conciliares não pode senão situar-se numa lógica de continuidade e de fidelidade às verdades até aqui ensinadas pela Igreja.

Outro critério de julgamento deve igualmente ser avançado: aquele dos fatos. Porque a escolha conciliar é de ordem contingente, porque este posicionamento da Igreja frente ao mundo moderno revela uma decisão estratégica muito mais que um esclarecimento dogmático, importa estimar o seu valor à luz dos resultados. A estratégia, como a árvore (cf. Mt 7.20), se julga pelos frutos.

A tarefa se revela tão urgente como imensa. Não podemos senão desejar a transição rápida de uma visão bipolar que oporia de maneira excessivamente simples “recepção plena e inteira do Concílio” a uma “negativa sistemática”. Todos poderemos então, pela reflexão crítica, preparar o trabalho de clarificação que, em última instancia, não pertencerá senão apenas ao Magistério.

Pe. Patrick de la ROCQUE,
FSSPX