Caros Amigos e Benfeitores:

Desde há tempo que desejamos enviar-vos esta carta, para vos dar notícias da nossa querida Fraternidade. Diferimos o seu envio porque queríamos vos expor nossa atitude após publicação do motu proprio, anunciado há alguns meses, sobre a permissão da Missa de São Pio V.

Com efeito, no mês de Outubro, enquanto reuníamos o nosso ramalhete espiritual para obter a liberação da Santa Missa, tudo parecia indicar uma próxima publicação de um motu proprio de Bento XVI respeitante a esta questão.

Mas parece bem que as indomáveis oposições de certos episcopados tenham forçado o Soberano Pontífice a diferir «um pouco».

Este «um pouco» está prestes a tornar-se de duração indeterminada, de modo que não esperamos mais para tecer algumas considerações sobre a situação.

Em primeiro lugar, estamos vivamente reconhecidos pelas vossas generosas orações. O nosso Capítulo tinha-se comprometido na oferta de um milhão de Terços no fim do mês de Outubro. A colheita foi abundante, pois finalmente enviamos ao Papa um ramalhete espiritual de dois milhões e meio de Terços. Indicamos na nossa carta, acompanhando o ramalhete, que queríamos mostrar com este ato concreto a nossa vontade de colaborar na reconstrução da Igreja e da Cristandade. É, para nós, evidente que a crise que aflige a Igreja desde o Concílio Vaticano II não terminará sem um vasto esforço e grande determinação da parte da hierarquia, começando pelo Vigário de Cristo. Porque se trata, nesta ocorrência, de vencer não somente a letargia criada por mau hábito, trata-se de combater erros e mesmo heresias e outras atitudes totalmente incompatíveis com a doutrina da Igreja, Esposa de Cristo, e que se incrustaram no Corpo Místico. Não se pode esperar resultado feliz sem a poderosa ajuda do Céu. Por isso nos voltamos sempre para Nossa Senhora e Nosso Senhor, para obter o melhor para a Igreja.

Mesmo que, até agora, o resultado esperado não tivesse sido realizado, no entanto, neste mês de Outubro, fomos testemunhas de uma cena jamais vista nestes últimos decênios, no que respeita à Missa de sempre. Com efeito, contrariamente ao slogan habitual, que atribui à nostalgia ou a uma sensibilidade particular a adesão à antiga liturgia latina, desta vez foram evocados argumentos sérios: a liberdade da Missa Tridentina apresenta problemas doutrinais, dizem-nos; a Missa põe em perigo as conquistas do Vaticano II. Como não nos alegrarmos com esta súbita descoberta?

Ao considerarem-se de perto os argumentos desta vez avançados, em particular no episcopado francês, mas também em Roma e na Alemanha, apercebe-se que os bispos, de fato, têm medo desta Missa. Mesmo em Roma se toma um extremo cuidado para não desautorizar a reforma de Paulo VI, quando se esboça a possibilidade do regresso à antiga Missa. O medo dos progressistas é tal, que é preciso justificar ao extremo e com fortes argumentos a permissão alargada da Missa Tridentina. Decerto, tal explica também porquê, até aqui, não recebemos nem agradecimento, nem resposta, tanto do Soberano Pontífice como do Vaticano. [D. Fellay refere-se ao envio do ramalhete de 2 milhões e meio de Terços e da carta que juntou – N.T]

Podemos e devemos tirar, da situação presente, conclusões para o futuro, mesmo que não conheçamos ainda o teor do famoso motu proprio.

  1. Se considerarmos como foram recebidos, neste último decênio, os documentos romanos pelo episcopado e pelos fiéis, devemos dizer que o que domina é bem uma indiferença muito grande, que tornou praticamente ineficazes as medidas que tais textos preconizavam. Quer se trate do lugar dos leigos na liturgia ou, mais recentemente, de prescrições litúrgicas, quer se trate da declaração Dominas Jesus ou da condenação do aborto e da eutanásia, é forçoso verificar-se que os documentos não tiveram nenhum efeito real. Pode desde já perguntar se o motu proprio não conhecerá a mesma sorte.
  2. No entanto, como o documento mais concede um favor do que impõe uma restrição, e que, por outro lado, se dirige a pessoas que nele têm grande interesse, poderá bem acontecer que as expectativas dos fiéis e dos padres arranquem as hierarquias de certos países da sua letargia e as despachem da sua resistência. É neste sentido que certos bispos evocam o risco de uma anarquia litúrgica na sua diocese. Quando se repara na multiplicidade de formas que, no concreto, assume a nova Missa, podemo-nos perguntar donde pode vir este medo de «divisão». Pelo contrário, a liturgia tradicional sempre se mostrou fator de unidade, em particular pela língua sagrada do latim.
  3. É muito pouco provável que o motu proprio seja seguido de uma reação de massa. Os padres e os fiéis que desejam a antiga liturgia são proporcionalmente pouco numerosos, e os outros perderam o gosto e o interesse por ela. Muitos esforços sérios serão necessários para recolocar em toda a Igreja, em seu lugar de honra, o rito venerável e sagrado que santificou séculos e séculos de Cristandade.
  4. Será, sobretudo, um movimento que arrancará lentamente, mas que, pouco a pouco, assumirá força, à medida da redescoberta das riquezas e da beleza da liturgia perdida. Com efeito, tanto quanto se conceda à Missa Tridentina, simplesmente, o direito de existir (esta Missa nunca foi suprimida!), esta se imporá pouco a pouco, não podendo a nova Missa rivalizar com ela.
  5. De qualquer maneira, uma permissão mais ampla de celebração da antiga Missa é uma bênção para a Igreja. Decerto, a aparição desse documento poderia criar, «entre nós», uma certa confusão, no sentido em que isso poderá dar a impressão de uma aproximação entre a Igreja oficial e a Tradição. É preciso esperar nessa ocasião, da parte de Roma, uma renovação do apelo à unidade. Para a Fraternidade, a liberalização mais ampla da Santa Missa é causa de regozijo, um passo na direção da restituição da Tradição; mas nem por isso a desconfiança de trinta anos de defesa e de combate contra «aqueles que deveriam ser nossos pastores» poderá ser tão facilmente vencida. Com efeito, é preciso considerar que a nova Missa é mais um efeito do que uma causa da crise que faz sofrer a Igreja há quarenta anos. Por outras palavras, a nossa situação quase nada muda com o regresso da antiga Missa, se este regresso não for acompanhado de outras medidas absolutamente essenciais.
  6. O ecumenismo, o liberalismo e o espírito do mundo que mancha a Esposa de Cristo são os princípios que sempre fazem viver a Igreja conciliar. Tais princípios matam o Espírito de Deus, o espírito cristão. Mais do que nunca, é preciso compreender as raízes da crise, a fim de evitar lançar-se a perder na nova situação que provocará a aparição do motu proprio. É indispensável, antes de considerar medidas globais de regularização canônica, passar por uma discussão de fundo sobre estas questões. Esperamos que Roma entenda, por fim, o nosso pedido de as preceder por aquilo que chamamos condições prévias, das quais uma poderia ser realizada pelo motu proprio. Durante trinta anos recusamos tomar o veneno; por causa disso somos rejeitados, e é ainda esta a condição (mais ou menos disfarçada) que Roma impõe para nos aceitar. O ecumenismo, a liberdade religiosa e a colegialidade são sempre os pontos incontornáveis nos quais encalhamos.
  7. Até aqui, o que acabamos de dizer não é mais do que especulação. As circunstâncias concretas, as disposições reais do motu proprio terão, talvez, outras precisões.

Ao iniciar a Quaresma, lembremo-nos de que os dons do Céu se obtêm pela oração e penitência purificadoras. Deus escuta com boa-vontade a oração de uma coração puro que se humilha. Assim, continuemos a nossa cruzada de oração, juntemos-lhe penitências voluntárias para arrancar ao Céu o que os homens da Igreja têm tanta dificuldade em dar às nossas almas. Mesmo que Deus pareça não escutar as nossas súplicas, não nos desencorajemos. Põe-nos à prova e quer ainda fazer-nos ganhar mais méritos.

+ Bernard Fellay
No Iº Domingo da Quaresma
25 de Fevereiro de 2007