Caros Amigos e Benfeitores

Nosso mundo tradicional realmente viveu numerosos acontecimentos importantes em suas relações com o Vaticano nesses últimos anos.

Desde a aproximação de Roma no fim do ano 2000, parece-nos que agora é o momento de fazer um balanço, e de responder também a certo número de objeções ou de questões que surgem em torno desta problemática. Entretanto, gostaríamos também de lembrar que, se nos estendemos um pouco acerca dessas questões, elas não são, certamente, toda a nossa vida. A celebração dos santos mistérios, as graças distribuídas abundantemente a vossas almas, as conversões muito numerosas e sempre muito comoventes — aí está o essencial de nossa vida, aí estão os fatos por que se manifesta que somos verdadeiramente católicos, ao passo que as negociações e as diferenças com o Vaticano exprimem nossa vontade de continuar a sê-lo. Nesses últimos tempos, um grupo importante de seminaristas em Bombaim juntou-se a nós. Durante sete anos de seminário, enquanto a existência do diabo era negada, jamais a palavra “inferno” lhes tinha chegado aos ouvidos, como tampouco, aliás, “o sacrifício da missa”. Tal nos vale as censuras do cardeal de Bombaim, naturalmente. Nos Estados Unidos, numerosos padres juntam-se a nós, ou se aproximam de nós. “Fiz de tudo para não ir para vós”, diz-me um deles. É um testemunho eloqüente: após ter esposado todas as possibilidades que se oferecem hoje em dia, a começar pela diocese, pela missa de indulto e pelas diversas sociedades Ecclesia Dei, estes padres e seminaristas chegam à conclusão, contra a sua vontade e seu medo inicial de se ligar aos que ainda são apresentados como cismáticos, de que é este o único caminho viável para uma vida cristã integral. Que época de confusão! O bem é amaldiçoado, e o mal, demasiado amiúde bendito. É o que experimentam hoje numerosos padres, que querem simplesmente permanecer católicos. Quantas vexações! Veja-se o caso de dois seminaristas repreendidos pelo reitor do seminário por terem sido pegos em flagrante delito de reza do rosário. Mas quando foram apanhados a assistir à missa de indulto… tiveram de responder por seu crime diante do cardeal em pessoa… Gostaria de saber que reprimendas ao menos semelhantes teriam sido feitas para todos os tipos de verdadeiras indisciplinas.

Enquanto certo número de padres se aproxima de nós, Campos aproxima-se de Roma. Parece-nos, com efeito, que o argumento decisivo para conquistar-lhes a vontade foi a promessa de um bispo, dada a situação de D. Licínio Rangel, já muito doente. Eles escrevem-me que julgavam não poder rejeitar a vontade do Santo Padre, que lhes queria dar um bispo: “isso seria cismático”. À guisa de bispo, eles deviam contentar-se com uma promessa: “Eu lhe darei um sucessor”. Naturalmente, ninguém ousa pôr em dúvida tal promessa, mas toda a questão reside na pessoa desse sucessor: Quem será? Onde será escolhido? É muito razoável pensar que Roma quererá assegurar-se da fidelidade do futuro bispo ao Vaticano II, pois alguns não perderam de todo suas reservas quanto à ortodoxia da posição doutrinal de Campos. A suspeita reina em Roma.

Tinha-se prometido também liberdade de ação em todo o Brasil, mas, diante da oposição dos ordinários locais, a área da Administração encolheu até reduzir-se aos limites da diocese de Campos, e isto é tudo.

Que fará Campos? Enquanto Campos se lança nessa tentativa arriscada com as armas das declarações ambíguas, nós constatamos um fenômeno muito interessante: neste momento mesmo, muitas comunidades do Brasil, estranhas à diocese e aos padres de Campos, tanto de frades como de freiras, fizeram contato conosco e querem… juntar-se à Tradição! e enviar seus futuros postulantes ao sacerdócio a nosso seminário na América do Sul. Com efeito, em número considerável, fiéis espalhados por todo este imenso país começam a se manifestar e pedem a nossa assistência… e não a de Campos. Verdadeiramente, que curioso desdobramento! É como se de repente o Brasil se abrisse ao apostolado da Fraternidade. Faltam-nos somente os obreiros, padres, sempre padres…

Nesse ínterim, após ter conseguido afastar Campos da Fraternidade e, pouco a pouco, de suas posições, o cardeal Castrillón enviou-nos, em 5 de abril último, uma carta, em resposta à nossa de 22 de junho de 2001. Ele propõe-se a reiniciar o “diálogo”. Antes de dizer uma palavra a respeito disso, retomemos o histórico das negociações.

Desde o início, com a oferta romana de nos dar uma estrutura jurídica, nós tínhamos exposto nossa abertura a discussões, insistindo, porém, muito firmemente, na necessidade de reconquistar a confiança.

De fato, as décadas de humilhações, de isolamento, de ameaças, de condenações, de verdadeiras perseguições por nossa fidelidade à Tradição da Igreja Católica não se dissipam por si mesmas. Pedimos, por conseguinte, e como preâmbulo, um gesto concreto da parte das autoridades romanas: o reconhecimento da não-ab-rogação do rito tridentino e a anulação do decreto de excomunhão.

O cardeal Castrillón comunicou-nos a anuência de princípio quanto ao primeiro ponto, acompanhada da recusa de o aplicar. E mais tarde, a recusa total, pois que conceder à missa tridentina esta liberdade não se faria senão em detrimento do novus ordo. Quanto à suspensão da excomunhão, foi-nos prometida para o momento do acordo.

Após esta dupla recusa, que reforçou ainda o clima de desconfiança, o cardeal escreveu uma carta, em 7 de maio de 2001. Respondi a esta carta que ela instituía um diálogo de surdos e nos conduzia ao impasse.

Eu propunha então mudar o ponto de partida, o modo de tratar a questão, a fim de fazer avançar as coisas. Brevemente, expusemos que nossa situação atual de dissidência com relação à Roma atual era causada não por uma má vontade culpável de nossa parte, mas por uma terrível crise que aflige a Igreja há quarenta anos e de que o concílio Vaticano II e as reformas pós-conciliares são o sinal evidente; citamos alguns fatos para mostrar a realidade e a gravidade da crise.

A carta de 5 de abril do cardeal censura-nos, à guisa de resposta:

  1. o julgar o Papa e a Santa Sé;
  2. o afirmar que a Igreja perdeu a fé;
  3. o negar ao soberano Pontífice seu direito sobre a liturgia, por afirmarmos que o Novus Ordo Missae é mau;
  4. o ter perdido a fé quanto ao verdadeiro conceito de tradição;
  5. o ser incapaz de apreender a continuidade que existiria entre o passado e o presente da Igreja, ou seja, entre o passado e o concílio Vaticano II com sua reforma litúrgica.

Esses pontos, evidentemente, exigem resposta.

Mas ao mesmo tempo, essa carta ilustra bastante bem o fato de que o diálogo de surdos não terminou; que incompreensão de nossa posição! Nós, no entanto, ter-nos-íamos disposto a tratar esses diversos pontos se tudo isso não estivesse acompanhado de manobras que nos obrigam uma vez mais a retrair-nos: “O tempo de franca colaboração ainda não chegou”, dizia Dom Lefebvre em 1988, no momento das sagrações; esta frase conserva toda a sua atualidade. Tais manobras são duplas.

O cardeal declara, por um lado, em sua carta, que dada a gravidade do assunto ele se absterá de conceder entrevistas públicas; alguns dias depois, expõe numa entrevista a La Stampa que a Fraternidade se divide em dois grupos:

“Uma grande maioria, que deseja ardentemente a reconciliação com Roma ‘para aliviar a consciência’ (carta de 5 de abril), e um pequeno grupo de fanáticos, que não quer escutar nada” (ainda que, na carta, o cardeal indique sua vontade de não nos dividir).

Por outro lado, alguns dias após me ter enviado a carta de 5 de abril com todo o aparato de discrição (envelope duplo, reservado, confidencial), ele envia esta mesma carta por fax a três membros da Fraternidade. Não nos é necessário buscar descobrir uma intenção, pois os fatos falam por si mesmos: há tentativa muito real de divisão; ela dita diretamente nossa atitude: guardar distância.

Em tais circunstâncias, a discussão não é razoável — é imprudente, impossível.

Verdadeiramente, não nos compreendem.

São atos, fatos, declarações escandalosas o que nos obrigou a rejeitar novidades e a nos ater de modo redobrado ao ensinamento e à disciplina multisseculares da Igreja Católica Romana, nossa Mãe.

  • A simples exposição de fatos — por exemplo, a visita do Papa à sinagoga ou à mesquita, o beijo no Alcorão, as libações da floresta do Togo, a recepção do tilac na Índia, gestos que escandalizaram profundamente os católicos em sua fé — não quer dizer que nos erijamos em juiz acima da Santa Sé. E diga-se o mesmo quanto a muitas declarações e documentos.

Ou então é preciso simplesmente renunciar a pensar.

  • Quanto à reforma litúrgica, dois cardeais chegaram a dizer que ela se afastava “de maneira impressionante, tanto no conjunto como nos pormenores, da teologia católica” (Breve exame crítico, dos cardeais Ottaviani e Bacci). E ainda, mais recentemente, o cardeal Ratzinger chegou a dizer que “esta extensão do poder papal no domínio da liturgia dá a impressão de que o Papa, no fundo, tinha todo o poder em matéria de liturgia, sobretudo se agia em vista do mandato de um concílio ecumênico. O efeito provocado por esta impressão foi particularmente visível após o concílio Vaticano II. Que a liturgia seja um dom, uma realidade não-manipulável, tudo isso tinha desaparecido da consciência dos católicos no Ocidente. Ora, o concílio Vaticano I definira o Papa não como um monarca absoluto, mas como o penhor da obediência à Palavra revelada. A legitimidade de seu poder estava ligada, antes de tudo, à transmissão da fé. Esta fidelidade ao depósito da fé, bem como à sua transmissão, concerne particularmente à liturgia. Nenhuma autoridade pode ‘fabricar’ uma liturgia. O próprio Papa não é senão o humilde servidor de seu desenvolvimento homogêneo, de sua integridade e da permanência de sua identidade” (L’esprit de la liturgie, Ed. Ad Solem, 2001, p. 134).
  • No que concerne à continuidade das doutrinas modernas com o passado, eis o que dizem pessoas “acima de qualquer suspeita” acerca da liberdade religiosa, texto chave do concílio: “Não se pode negar que tal texto [o texto do Concílio acerca da liberdade religiosa] diz materialmente outra coisa que o Syllabus de 1864 e pouco mais ou menos o contrário dos parágrafos 15, 77, 78 e 79 deste documento.” (P. CONGAR, La crise dans l’Église et Mgr Lefebvre, Cerf, 1976, p. 51).
  • Sobre a definição da Igreja (Lúmen gentium): “Não se pode, em última análise, resolver plenamente do ponto de vista lógico esta diferença entre ‘subsistit’ e ‘est’.” (Cardeal RATZINGER, “L’ecclésiologie de la Constitution Conciliaire Lumen gentium”, La Documentation catholique, nº 2.223, p. 311).
  • Sobre o conceito de Tradição (Dei Verbum): “A recusa da proposta de tomar o texto de Lérins, conhecido e santificado, de certo modo, por dois concílios, mostra de novo que se deixou para trás Trento e o Vaticano I, e a contínua releitura de seus textos… [o concílio Vaticano II] tem outra idéia da maneira como se realiza a identidade histórica e a continuidade. O ‘semper’ estático de Vincent de Lérins não lhe parece apropriado para exprimir esse problema.” (Joseph RATZINGER, LThK, Bd 13, p. 521).
  • Já o texto chave do concílio, Gaudium et spes, é um contra-Syllabus. “Se se buscasse um diagnóstico global do texto (Gaudium et spes), poder-se-ia dizer que ele é (em conjunto com os textos acerca da liberdade religiosa e acerca das religiões do mundo) uma revisão do Syllabus de Pio IX, uma espécie de contra-Syllabus… contentemo-nos aqui com constatar que o texto desempenha o papel de contra-Syllabus na medida em que representa uma tentativa de reconciliação oficial da Igreja com o mundo tal qual ele ficou após 1789.” (Les principes de la théologie catholique, Téqui, 1982, p. 426).

Nós cremos, sim, no desenvolvimento homogêneo da doutrina, como sempre o ensinou a Igreja. Mas a fé, que não elimina o princípio de não-contradição, obriga por isso a rejeitar o que não se encontra neste desenvolvimento homogêneo.

Constatamos quanto a apreciação do cardeal é errônea… Todos desejamos a unidade da Igreja, unidade que começa na fé, que continua em torno de Pedro, o qual confirma seus irmãos, e que se consuma na união com Jesus hóstia. Todos, para conservar esta unidade, e em nome de nossa consciência católica, devemos recusar-nos a tomar este caminho largo e fácil, que as reformas propõem. É para aliviar nossas consciências que estamos onde estamos, e elas não estariam de todo aliviadas se nos lançássemos precipitadamente num caminho que recusamos durante trinta anos… para permanecer católicos.

É em nome da fé de nosso batismo, é em nome das promessas de nosso batismo, às quais temos de permanecer fiéis, que dizemos não a tudo o que não nos assegure a salvação. Tal é nosso direito, tal é nosso dever.

Que o Sagrado Coração vos cumule de sua ardente caridade, de um amor indefectível pela Igreja, por sua hierarquia que nos tem feito sofrer, pelas almas, as almas por salvar ao preço da união ao Sacrifício de Nosso Senhor, à santa Missa, que nos faz penetrar profundamente na firmeza da fé, em seu amor reparador e satisfatório. Tudo por Jesus, tudo por Maria, tudo pelas almas.

+ Bernard Fellay
Superior Geral da Fraternidade Sacerdotal São Pio X
Na festa do Sagrado Coração
7 de junho de 2002

Tradução: Mosteiro da Santa Cruz.