Retirado de Veritati nº 3-
Boletim aos amigos e benfeitores da FBMV

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O célebre abade de Solesmes é autor de uma obra litúrgica clássica, L’Année Liturgique, da qual nós traduzimos alguns trechos introdutórios, referentes às 3 missas do dia de Natal. Uma bela meditação para o tempo do Natal, que se aproxima.

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Missa da meia-noite

Mas é tal a grandeza deste mistério que a Igreja não se limitará a oferecer um só Sacrifício. A Chegada de um dom tão precioso e longamente esperado merece ser reconhecida com novas homenagens. Deus Pai dá seu Filho à Terra; o Espírito de Amor opera esta maravilha: convêm que a Terra corresponda à gloriosa Trindade com a homenagem de um triplo Sacrifício.

Além disso, Aquele que nasce hoje não se manifestou em três nascimentos? Ele nasce, nessa noite, da Virgem bendita; ele vai nascer, pela sua graça, nos corações dos pastores que são as primícias de toda a cristandade; ele nasce eternamente do seio de seu Pai, nos esplendores dos santos; este triplo nascimento deve ser honrado por uma tripla homenagem.

A primeira missa honra o nascimento segundo a carne. Os três nascimentos são como efusões da luz divina; ora, eis a hora onde o povo que andava nas trevas viu uma grande luz, e onde o dia nasceu sobre aqueles que habitavam a região das sombras da morte. Fora do templo santo onde nos reunimos, a noite é profunda: noite material, por causa da ausência do sol; noite espiritual, por causa dos pecados dos homens, que dormem no esquecimento de Deus, ou que estão acordados para cometer crimes. Em Belém, em torno do estábulo, na cidade, o ambiente é de sombras; e os homens que não encontraram lugar para o Hóspede divino, repousam numa paz grosseira; eles não serão despertados pelo concerto dos anjos.

Entretanto, à meia-noite, a Virgem sentiu que chegava o momento supremo. Seu coração maternal é, de repente, inundado de delícias desconhecidas; ele se liquefaz num êxtase de amor. Súbito, ultrapassando com sua onipotência as barreiras do seio maternal, do mesmo modo que ele penetrará um dia a pedra do sepulcro, o Filho de Deus, Filho de Maria, aparece estendido sobre o solo, sob os olhares de sua mãe, para a qual ele estende os braços. O raio de sol não ultrapassa com mais rapidez o puro cristal, que não o pode impedir. A Virgem Maria adora esse Menino divino que sorri para Ela; Ela ousa abraçá-lo; Ela o envolve de panos que Ela tinha preparado. Ela o deita no presépio. O fiel José adora com Ela; os santos anjos, segundo a profecia de Davi, rendem profundas homenagens a seu criador, no momento de sua entrada nesta Terra. O céu se abre por cima do estábulo, e os primeiros votos do recém-nascido sobem ao Pai dos séculos; seus primeiros gritos, seus doces vagidos chegam aos ouvidos do Deus ofendido, e já preparam a salvação do mundo.

No mesmo momento, a pompa do Sacrifício atrai todos os olhares dos fiéis para o altar; os ministros sagrados partem, o padre sacrificador chega aos degraus do santuário. Enquanto isso, o coro canta o cântico de entrada, o Introito. É Deus mesmo quem fala; Ele diz a seu Filho que Ele o engendrou hoje. Em vão, as nações tremerão na sua impaciência por causa de seu jugo; este Menino as dominará, e Ele reinará. Pois Ele é o Filho de Deus.

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Missa da Aurora

Eis que, nesse mesmo momento, os pastores, convidados pelos santos anjos, chegam apressados a Belém; eles se comprimem no estábulo, que era muito pequeno para conter o seu número. Dóceis à advertência do Céu, eles vieram para reconhecer o Salvador que, disseram-lhes, tinha nascido para eles. Eles encontram todas as coisas conforme ao que os anjos lhes tinham anunciado. Quem poderia narrar a alegria dos seus corações, a simplicidade de sua fé? Eles não se espantam de encontrar, sob as aparências de uma pobreza semelhante à sua, Aquele cujo nascimento comove mesmo aos anjos. Seus corações compreenderam tudo; eles adoram e querem muito bem a esse menino. Eles são já cristãos: a Igreja cristã começa com eles; o mistério de um Deus rebaixado é recebido por corações humildes. Herodes tentará matar o menino; a Sinagoga tremerá; seus doutores se elevarão contra Deus e contra o seu Ungido; eles levarão à morte o libertador de Israel; mas a Fé permanecerá firme e inabalável na alma dos pastores, esperando que os sábios e os poderosos por sua vez se abaixassem diante do Presépio e da Cruz.

Que se passou no coração desses homens simples? Cristo nasceu nesses corações, Ele aí habita doravante pela Fé e pelo Amor. Eles são nossos pais na Igreja. E nós devemos nos tornar semelhantes a eles. Chamemos, pois, o divino Menino, para que Ele venha às nossas almas; deixemos um lugar para Ele, e que nada lhe feche a entrada nos nossos corações. Os anjos falam também para nós, eles nos anunciam a boa-nova; este benefício não deve se restringir somente aos habitantes dos campos de Belém. Ora, a fim de honrar o mistério da vinda silenciosa do Salvador nas nossas almas, o padre vai daqui a pouco subir ao santo altar e apresentar, pela segunda vez, o Cordeiro sem mácula aos olhares do Pai Celeste que o envia.

Que nossos olhos estejam, pois fixos sobre o altar, como os olhos dos pastores sobre o Presépio; procuremos aí, como eles, o Menino recém-nascido, envolvido em panos.

Entrando no estábulo, eles ainda ignoravam Aquele que eles iriam ver; mas os seus corações estavam preparados. De repente eles o perceberam, e seus olhos se fixaram sobre o Sol divino. Jesus, do fundo do Presépio, olha para eles com amor; eles são iluminados, o dia nasce em seus corações. Mereçamos que se cumpra em nós esta palavra do Príncipe dos Apóstolos: a lucerna que alumia num lugar obscuro, até que venha o dia, e a estrela da manhã nasça em vossos corações (II Pe. I, 19).

Nós chegamos aí, a essa aurora bendita; o divino Oriente apareceu, Aquele que nós esperávamos, e ele não desaparecerá mais em nossa vida: pois nós queremos temer acima de tudo a noite do pecado, noite da qual Ele nos livrou. Nós somos os filhos da luz e os filhos do dia (I Tess. V, 5); nós não conhecemos mais o sono da morte; mas nós sempre velaremos, lembrando-nos que os pastores velavam quando o anjo lhes falou e o céu se abriu sobre as suas cabeças. Todos os cantos dessa Missa da Aurora nos mostrarão de novo o esplendor do Sol de Justiça; desfrutemos deles como se fôssemos cativos presos há muito tempo numa prisão tenebrosa, aos quais uma doce luz vem lhes devolver a vista. O Deus da luz resplandece no fundo do Presépio; seus raios divinos embelezam os traços nobres da Virgem Maria, que o contempla com tanto amor; a face venerável de São José também recebe dele um brilho novo; mas estes raios não são contidos nos estreitos limites da gruta. Eles deixam nas suas trevas merecidas a ingrata Belém, mas eles se espalham pelo mundo inteiro, e acendem em milhões de corações um amor inefável por esta Luz do alto, que arranca o homem dos seus erros e paixões e o eleva em direção ao sublime fim, para o qual ele foi criado.

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Iluminura medieval sobre o Natal. Início do Ofício Divino:
“Deus in adjutorium meum intende. Domine, ad ad…”

Missa do dia

O mistério que a Igreja honra nessa terceira missa é o do nascimento eterno do Filho de Deus no seio de seu Pai. Ela celebrou, na meia-noite, o Deus-Homem nascendo do seio da Virgem no estábulo; na aurora, o divino Menino nascendo no coração dos pastores; nesse momento, resta-lhe contemplar um nascimento muito mais maravilhoso que os dois outros, um nascimento cuja luz ofusca o olhar dos anjos, e que é o eterno testemunho da fecundidade de nosso Deus. O Filho de Maria é também o Filho de Deus: nosso dever é o de proclamar hoje a glória desta inefável geração, que o produz consubstancial ao Pai, Deus de Deus, Luz da Luz. Elevemos nossos olhares até o Verbo Eterno que era no princípio com Deus, e sem o qual Deus não foi jamais. Pois Ele é a forma de sua substância e o esplendor de sua eterna verdade.

A santa Igreja abre os cantos do terceiro sacrifício pela aclamação ao Rei recém-nascido. Ela celebra o poderoso principado que Ele possui, enquanto Deus, antes de todos os tempos, e que Ele receberá, como homem, por meio da Cruz que um dia Ele deverá carregar sobre seus ombros. Ele é o Anjo do Grande Conselho, quer dizer o enviado do Céu para cumprir o sublime desígnio concebido pela gloriosa Trindade, de salvar o homem pela Encarnação e pela Redenção. Nesse augusto conselho, o Verbo teve sua parte divina. E seu devotamento á glória de seu Pai, junto a seu amor pelos homens, lhe faz tomar sobre si o cumprimento.

Leia mais sobre o Natal no Boletim Veritati nº 3 da FBMV, comunidade amiga da FSSPX de Candeias, Bahia.