Editorial da Revista Iesus Christus 117, Maio-Junho de 2008.

R. P. Christian Bouchacourt

 

Há cerca de cinquenta anos quase a totalidade dos países católicos têm oficialmente renunciado a sê-lo. Todos estão afetados pelo mesmo mal – o do ateísmo e o do laicismo – e perturbados por uma desordem social e econômica que nenhum remédio parece poder curar. Soma-se a isso uma terrível decadência moral, a qual os adversários da Igreja conseguem impor com mais ou menos êxito, segundo as resistências que vão encontrando. Há ocasiões em que projetos como o aborto, a contracepção, a legalização da homossexualidade e a educação sexual nas escolas não entram imediatamente em vigor, graças à coragem de certos bispos e políticos; porém, curiosamente, esses projetos nunca são deixados de lado. Os inimigos da Igreja e da Cristandade jogam com o tempo. Sabem que suas ideias irão impor-se mais cedo ou mais tarde, adiando-as eficazmente e difundindo-as pelos meios de comunicação, que eles controlam de modo quase exclusivo. 

Durante esses últimos cinquenta anos, em alguns países foram feitas tentativas para salvar a sociedade católica; contudo, não tiveram efeitos duráveis. Existe algo assim como uma maldição que parece esterilizar todos os movimentos de restauração católica, enquanto que os adversários estão sempre na crista da onda. A quê se deve isso? Numerosos leigos católicos abandonam o combate, desenganados pelos repetidos fracassos. Enfim, alguns creem que já não há nada a fazer, senão esperar que sobrevenham “os acontecimentos” iminentes anunciados por aparições mais ou menos duvidosas. No entanto, nada acontece… e, em contrapartida, a decadência religiosa, econômica e social seguem acelerando-se. Até onde chegarão os inimigos da Igreja? Como é que conseguem coroar com tanto êxito seus funestos projetos?

A própria Igreja está afetada por esse mesmo sintoma de autodestruição. Por quê? A crise que ela atravessa tem um lado misterioso, assim como a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo teve o seu. Pois bem: é possível determinar com certeza as autoridades culpáveis pela morte de Cristo: os chefes dos sacerdotes judeus. Deram as mãos às autoridades políticas para condenar o Salvador e eliminar a influência extraordinária, da qual estavam enciumados, que Ele exercia sobre as turbas. São essas autoridades religiosas judias as que levaram Cristo diante dos tribunais civis e obtiveram sua condenação à morte. 

Hoje em dia, é essa mesma conspiração das autoridades religiosas com os dirigentes políticos que condena à morte a sociedade católica. Os Papas, e os Bispos nomeados por eles, impregnados, desde João XXIII, de modernismo e liberalismo, são os principais responsáveis por uma desintegração da sociedade católica que parece inevitável. Durante o último concílio, creram que era possível “catolicizar” os princípios da Revolução Francesa, tal como mais tarde o afirmará o próprio Cardeal Ratzinger. É como querer “batizar o diabo”… Essa união antinatural entre a Igreja e a Revolução é a causa dos males que afetam a Igreja e a sociedade civil. Esses princípios, preparados nas lojas maçônicas, são os que têm feito entrar “a fumaça de Satanás” (tal como disse Paulo VI) na Igreja e têm matado a alma das sociedades católicas. 

Não faz muito tempo, um Bispo que me recebeu em seu gabinete confessou que havia tido problemas para aplicar algumas reformas e aceitar alguns textos do último concílio. No entanto, me disse: “… seguindo o Papa estava seguro de estar na verdade. Portanto, aceitei tudo”. Com semelhantes princípios São Paulo não deveria ter resistido a São Pedro, e, nesse caso, todos os batizados ainda estaríamos submetidos à circuncisão e a certas práticas da religião judaica! E Santo Atanásio tampouco poderia ter combatido a heresia ariana, nem teria sido canonizado, apesar de sua oposição ao Papa. Ao escutar essas objeções, o Bispo respirou fundo e dirigiu a conversa para outros temas… 

A Igreja e a sociedade padecem em razão da deserção dos Bispos, que já não se animam a ensinar a sã doutrina nem a denunciar o erro. Para muitos, o restabelecimento do reinado social de Nosso Senhor Jesus Cristo é um ideal caduco ou inalcançável; por isso louvam o pluralismo religioso na sociedade e o reivindicam, rechaçando todo estatuto especial para a Igreja. Gostaria que comparassem os dois textos que seguem porque valem mais que uma longa explicação. O primeiro é de São Pio X e diz assim: 

“Apoiar-se sobre o princípio fundamental de que o Estado não deve cuidar de nada que se refira à religião, significa uma grande injúria a Deus (…) Em segundo lugar, a tese que mencionamos constitui uma verdadeira negação da ordem sobrenatural (…) Em terceiro lugar, essa tese nega a ordem da vida humana sabiamente estabelecida por Deus, ordem que exige uma verdadeira harmonia entre as duas sociedades, a religiosa e a civil (…) Finalmente, essa tese inflige um dano gravíssimo ao próprio Estado, porque esse não pode prosperar nem alcançar estabilidade prolongada se deprecia a religião, que é a regra e a mestra suprema do homem para conservar sagradamente os direitos e as obrigações”. 1

 O segundo é do Cardeal Levada:

“Graças à Constituição dos Estados Unidos, viemos à vida em um país que nos garante o direito natural à liberdade religiosa. Todos nós temos o direito de professar nossa fé de acordo com nossa consciência. A proibição de que o governo professe uma religião particular o permitiu adotar uma atitude «desinteressada» frente a todas as religiões (…) A Igreja, com efeito, reconhece e compartilha com entusiasmo a proibição constitucional de reconhecer uma religião de estado ou de impedir seu livre exercício”. 2

Não creem vocês que este último texto está em total ruptura com o ensinamento tradicional da Igreja? É proveniente de quem hoje é Cardeal da Santa Igreja, e foi elevado ao cargo de Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé! O Papa Bento XVI, há algumas semanas, ao voltar de uma viagem aos Estados Unidos, retomou quase literalmente essas considerações. Esses são os princípios que têm condenado à morte a Cristandade e tornada vã qualquer tentativa de restauração católica já há muitíssimos anos.

A Igreja precisa contar com Bispos integralmente católicos, que sejam ecos de Gregório XVI, de Pio IX, de Leão XIII, de São Pio X, de Pio XI ou de Pio XII, os quais a iluminaram com seus ensinamentos. Esses Papas souberam professar a verdade e denunciar o erro. À Igreja e à sociedade civil faltam doutores da Fé, que sejam ardorosos, que estejam convencidos de que a Tradição católica não é algo caduco. Pesa-nos comprovar que não há nenhum Bispo em atividade que tenha lucidez sobre as origens da crise que nos afeta. Nenhum quer voltar à Tradição católica, pregada e aplicada integralmente. Nenhum quer fazer um juízo crítico sobre os textos do último concílio — ecumenismo, liberdade religiosa, colegialidade — que estão em ruptura com a Tradição. Nenhum quer regressar oficial e habitualmente à Missa tradicional e aos sacramentos que santificaram gerações e gerações de católicos. 

Pedimos aos bispos que nos falem do “Deus que se fez homem” e sobre sua doutrina salvadora, e não do “homem que se faz deus”, como sucede com tanta frequência. Pedimos com urgência que esclareçam nossas inteligências e fortaleçam nossa vontade, ajudando-nos assim a amar a Deus e a segui-Lo. Cessem já de exaltar a consciência humana livre de todo vínculo superior!

E é somente porque nenhum Bispo se ajusta a esse sublime rol, que há 20 anos Monsenhor Lefebvre sagrou quatro Bispos, desejando suprir assim a essas trágicas deficiências. Não queria nos deixar órfãos após sua morte. E aquela foi, como se chamou, a “Operação Sobrevivência”3, a qual resgatou o sacerdócio e a Tradição católica. Onde estaríamos hoje em dia se esse ato providencial não tivesse ocorrido? No dia 30 de junho de 1988, nosso fundador realizou um ato heroico de caridade, sagrando quatro Bispos e sacrificando, assim, sua reputação pelo bem das almas e da Igreja. 

Já há 20 anos se distinguem, por certo, alguns avanços positivos como o Motu Proprio; porém, na prática, a situação permanece sem mudanças e o erro se tornou mais sutil do que nunca… Em julho passado, em razão das ordenações sacerdotais administradas aos seminaristas da Fraternidade São Pedro, o Cardeal Castrillón Hoyos exortou, em seu sermão, os sacerdotes a concelebrar com seus Bispos “pelo menos a missa crismal e quantas vezes isso fosse conveniente para manifestar a plena comunhão eclesial”. Nessa mesma linha, há algumas semanas a Fraternidade São Pedro recebeu uma paróquia pessoal em Roma, porém, em contrapartida, teve que aceitar que um sacerdote diocesano rezasse uma Missa Nova todos os domingos. Vinte anos atrás, o Cardeal Ratzinger colocava como condição a Mons. Lefebvre que, todos os domingos, fosse rezada a Missa de Paulo VI em Saint-Nicolas-du-Chardonnet, em Paris. Não, a situação não mudou essencialmente após duas décadas… O Vaticano II segue sendo intocável.

Como se pode pretender que tenhamos confianças diante de fatos desse tipo, que falam por si mesmos? A Fraternidade São Pio X, ao lado de outras congregações tradicionais, é a única que grita as verdades em alta voz e denuncia os erros. Todos aqueles que firmaram acordos com Roma tiveram que emudecer e são inoperantes em termos da restauração da Tradição. Essa, e não outra, é a triste realidade!

Queridos fiéis, o estado de necessidade continua existindo hoje mais do que nunca; e mais do que nunca temos necessidade de contar com os quatro Bispos auxiliares da Fraternidade São Pio X para nos fortalecer na Fé e nos santificar. Que Deus os fortaleça. Demos-lhes nossos sinceros agradecimentos por sua constante entrega por nossas almas. Retribuamos-lhes com nossas orações. 

Rezemos e façamos penitência pela Igreja e pelo Papa. Supliquemos a Deus que converta os Bispos do mundo inteiro, a fim de que recuperem e façam valer suas vozes. Disso depende a salvação de milhões de almas e o êxito de toda restauração católica. 

Que Deus os abençoe!

 

Padre Christian Bouchacourt

Superior do Distrito da América do Sul

 

1. Vehementer nos, 11 de fevereiro de 1906

2. Cardenal William Levada, Reflexão sobre o papel dos católicos na vida política e recepção da sagrada comunhão, 13 de junho de 2004

3. Mons. Lefebvre, Sermão das consagrações episcopais, 30 de junho de 1988