Artigo 1

       Estas linhas vão destinadas principalmente aos sacerdotes membros da Fraternidade, mas também aos seminaristas, aos irmãos, às religiosas professas e noviças da Fraternidade, às oblatas, e a todos aqueles e aquelas que colaboram com nosso apostolado e participam da vida de nossa família espiritual.

       Ao cumprir a Fraternidade seu décimo aniversário, queria tratar de definir e escrever o que chamamos o espírito da Fraternidade.

       Escutamos às vezes, aqui e ali, críticas mais ou menos vivas por parte de nossos amigos: “Os membros da Fraternidade se crêem privilegiados, crêem ser a Igreja, e assim faltam de consideração para com os demais; pretendem possuir tudo, controlar tudo, etc.”. É possível que a juventude e a inexperiência no apostolado tenham provocado alguma vez torpeza e mal-entendidos. É certo que devemos fazer todo o possível para praticar a caridade com todos aqueles que se esforçam, como nós, em combater o erro e manter a fé. Mas, deixando isso de lado, não é inútil situar bem a Fraternidade no contexto atual da Igreja, para estar eventualmente preparados a viver em um contexto novo, sem ter que modificar em nada nossa entidade de Igreja e na Igreja.

       Reconhecida pela Igreja como Sociedade de vida comum sem votos e como Fraternidade Sacerdotal, nossa Fraternidade está enxertada no tronco da Igreja e toma sua seiva de santificação na mais autêntica tradição da Igreja e nas fontes vivas e puras de sua santidade, de modo parecido a tantas sociedades reconhecidas pela Igreja ao longo dos séculos, e que fizeram crescer e florescer novos ramos, e produzido frutos de santidade que são a honra da Igreja militante e triunfante.

       A luta selvagem e injusta levada a cabo contra a Fraternidade por aqueles que se esforçam em corromper as fontes de santificação da Igreja, não faz senão confirmar sua autenticidade. São os sucessores de Caim que querem novamente matar Abel, cujas orações são agradáveis a Deus.

       Em tempos normais, a fundação e o desenvolvimento de nossa Fraternidade teriam passado despercebidos em meio de inúmeras sociedades florescentes e fecundas com frutos maravilhosos. Mas hoje, a esterilidade e os frutos amargos da maioria desses ramos contrastam com o vigor dos ramos tradicionalistas. Por isso, a situação da Fraternidade Sacerdotal São Pio X na Igreja lhe outorga um lugar particular, bem compreendido pelos fiéis que em seu conjunto manifestam claramente seu desejo de ser evangelizados e santificados pela Fraternidade ou por sacerdotes que estão de acordo com ela. Por outro lado, é um estímulo e um consolo para nós ver o número cada vez maior de sacerdotes que, sem serem membros da Fraternidade, manifestam o desejo de se aproximarem à Sociedade, para encontrar nela alívio, assistência espiritual, e a segurança de não ficarem isolados.

       Este lugar da Fraternidade na Igreja tem uma importância considerável, pois faz legítima sua continuidade e a manutenção de seu apostolado na linha inalterável de sua fundação aprovada pela Igreja. Será, pois, muito proveitoso definir nossa Fraternidade, já que ela representa, pela graça de Deus, uma esperança para a Igreja e para as almas.

       Estas poucas linhas pretendem ser um prólogo para os próximos números.

+ Marcel Lefebvre
7 de fevereiro de 1981


Artigo 2

       O espírito da Fraternidade é antes de mais nada o da Igreja, e portanto seus membros, sacerdotes, irmãos, irmãs, oblatas, terceiros, se esforçam por conhecer cada vez melhor o Mistério de Cristo, tal como o descreve São Paulo em suas epístolas, e especialmente nas dirigidas aos Efésios e aos Hebreus. Descobriremos então o que guiou a Igreja durante vinte séculos, e compreenderemos a importância que dá ao Sacrifício de Nosso Senhor e, por conseguinte, ao Sacerdócio. Aprofundar este grande mistério de nossa fé que é a Santa Missa, ter por Ele uma devoção sem limites, pô-lo no centro de nossos pensamentos, de nossos corações, de toda nossa vida interior, será viver do espírito da Igreja.

       Toda a Escritura está orientada à Cruz, à Vítima redentora e radiante de glória; toda a vida da Igreja está voltada ao altar do Sacrifício e, por conseguinte, sua principal solicitude é a santidade do Sacerdócio. Tais são também as convicções fundamentais da Fraternidade, que consagra todos seus esforços à formação dos futuros sacerdotes; esta é a preocupação dos priorados, das escolas, e sobretudo dos seminários.

       Para os seminaristas, a descoberta cada vez mais profunda do grande mistério ao qual estão destinados, deve imprimir em suas vidas um caráter muito particular: cativados por Nosso Senhor e seu Sacrifício, devem renunciar ao mundo e a suas vaidades, manifestando este desprendimento por sua veste, por sua atitude, por seu amor ao silêncio e ao retiro, inclusive se mais tarde o apostolado lhes exigirá dedicar-se às almas.

       O espírito da Igreja está orientado às coisas divinas, sagradas. Ela forma o doador das coisas sagradas, o “sacerdos”, ou seja, “sacra dans”; o que realiza as ações santas e sagradas, “sacrificium”, ou seja, “sacrum faciens”. Ela põe em suas mãos “consagradas” os dons divinos e sagrados, “sacramenta”, os sacramentos. A Igreja consagra e dá um caráter sagrado aos batizados, aos confirmados, aos reis, às virgens, aos cavaleiros, às igrejas, aos cálices, às pedras de altar, e todas estas consagrações são realizadas na irradiação do Sacrifício de Nosso Senhor e na mesma pessoa de Jesus.

       Pois bem, um dos fenômenos mais dolorosos de nosso tempo é a dessacralização, dessacralização perseguida pela maçonaria e realizada por meio do laicismo, do ateísmo, do racionalismo, e agora levada também a cabo, desgraçadamente, pelos mesmos clérigos. Isso significa que Deus e tudo o que o invocava ou o que a Ele levava, é eliminado pouco a pouco para dar lugar ao homem desnaturado. A sociedade se converte então em um inferno.

       A Fraternidade, imersa no ambiente dessas sociedades laicizadas, se consagra a manifestar Nosso Senhor Jesus Cristo ressuscitando o verdadeiro espírito da Igreja, Esposa mística de Nosso Senhor, e voltando a pôr em honra as pessoas consagradas e as coisas sagradas. O sagrado, o divino, inspiram respeito. Uma das características da Fraternidade será a de se mostrar respeitosa com as almas batizadas, e de tratar com respeito todas as coisas sagradas, em particular tudo o que concerne à Ação Sagrada por excelência: o Santo Sacrifício da Missa. Por isso, evitaremos deixar-nos levar por essa corrente de vulgaridade e de grosseria, fruto da dessacralização. O respeito de nós mesmos e dos demais será um distintivo particular do verdadeiro espírito da Igreja.

       Os fiéis e inclusive os infiéis são muito sensíveis a esta manifestação do espírito da Igreja e de Nosso Senhor. É a verdadeira manifestação do espírito cristão e da civilização cristã, civilização do respeito fundado sobre a fé ao sagrado e ao divino, ou seja, a Nosso Senhor e a tudo o que o representa e tudo o que dEle emana.

+ Marcel Lefebvre
4 de junho de 1981


Artigo 3

       Os membros da Fraternidade, profundamente convencidos de que a fonte da vida se encontra em Cristo crucificado, e portanto, no Sacrifício que Ele nos legou, descobrirão com uma alegria cada vez maior que a Esposa mística de Nosso Senhor, nascida do Coração traspassado de Jesus, não tem maior empenho que o de transmitir este precioso testamento, com uma magnificência inspirada pelo Espírito Santo.

       Daí vêm os esplendores da Liturgia, que canta Jesus crucificado e ressuscitado. A Igreja soube apresentar-nos e fazer-nos viver estes mistérios de uma forma verdadeiramente divina, que cativa os corações e eleva as almas. Tudo o dispôs com um amor de Esposa fiel e de Mãe misericordiosa. Tudo é motivo de edificação nos lugares sagrados, nas cerimônias, nos ornamentos, nos cantos, na eleição das orações do Missal, do Breviário, do Pontifical e do Ritual.

       Como poderia desejar a dessacralização a alma que vive da fé e que modela sua fé sobre a da Igreja? Os membros da Fraternidade, apegados a esta espiritualidade da Igreja gravada nas pedras, nos livros litúrgicos tradicionais, se esforçarão não somente em aplicar a si mesmos estes princípios de vida espiritual, senão também em descobrir suas maravilhas aos fiéis. As consequências deste amor à Liturgia se manifestarão no cuidado vigilante da beleza e da limpeza dos lugares sagrados, do enxoval do altar, dos objetos destinados ao culto. Se manifestarão também na beleza das cerimônias, dos cantos, na regularidade e na recitação edificante do Ofício divino.

       Nada é pequeno, nada é mesquinho, no serviço de um tal Senhor e Rei. Tenhamos sempre consciência disso, é um meio muito eficaz de apostolado. Se a Liturgia é antes de tudo louvor da Santíssima Trindade, oferenda e Sacrifício, fonte de vida divina, é também a catequese mais viva, a mais eficaz. Bem-aventurados os fiéis que têm sacerdotes com almas cativadas da Liturgia da Igreja!

       Para dispensar as coisas santas, nos inspiraremos nos sentimentos da Igreja, em seu respeito por Nosso Senhor e por tudo o que a Ele se refere, como o fez a Virgem Maria.

       Respeito profundo, mas também humildade e simplicidade, evitando toda originalidade ou invenção própria. Teremos a audácia de crer que nossa atitude pessoal, nossas maneiras de agir, seriam preferíveis às da Igreja? Os atos da Liturgia são atos públicos e não atos de devoção privada. Por isso devemos cumpri-los segundo o espírito e a vontade da Igreja, e não segundo nossos caprichos nem os dos reformadores de espírito protestante.

       Evitemos tanto a precipitação como a excessiva lentidão. Ambas desedificam os fiéis. Evitemos uma acumulação de cerimônias contrárias ao espírito da Igreja. Tenhamos conta da disponibilidade dos fiéis para estabelecer os horários das cerimônias, a duração das cerimônias extra-litúrgicas, as pregações, sempre com o fim de edificar e não de satisfazer nossas preferências. Mas nestes tempos de laicização, os fiéis sentem a necessidade de rezar, de manifestar sua fé nas procissões, peregrinações, adorações noturnas. A prudência pastoral deve ser exercida nestas circunstâncias para encontrar a justa medida.

       Peçamos à Virgem Maria que nos comunique suas luzes sobre os Santos Mistérios, aos quais Ela esteve tão intimamente associada no curso de sua vida terrestre.

+ Marcel Lefebvre
26 de setembro de 1981


Artigo 4

       Nos artigos precedentes fizemos notar que o espírito da Fraternidade é essencialmente um espírito sacerdotal, iluminado pela irradiação do Sacrifício redentor do Calvário e da Missa, “Mistério de Fé”. Este grande mistério, sol de nossa fé, é-nos transmitido pela Igreja em sua Liturgia, na qual, como uma Mãe, se esforça em despertar-nos as riquezas infinitas deste mistério pelas ações, palavras, cantos, ornamentos litúrgicos, distribuídos segundo o admirável ciclo litúrgico. Desejosa de viver este mistério, a Fraternidade se consagra com zelo ao conhecimento da Liturgia, e se esforça por realizá-la em toda sua beleza e esplendor. “Domine, dilexi decorem domus tuae”. O espírito da Fraternidade é um espírito litúrgico.

       Esta aproximação a Deus em seu Sacrifício redentor produzirá nas almas dos membros da Fraternidade os mesmos efeitos, guardadas as devidas proporções, que experimentaram as almas privilegiadas que receberam os estigmas de Nosso Senhor. Os efeitos são duplos: os primeiros condicionam aos segundos e são sua origem: são os aspectos contemplativos: desejo ardente de oblação total como vítima em união com a divina Vítima, amor de Deus e de Nosso Senhor ao sacrifício de si mesmo, abandono total à santa vontade de Deus, união ardente com o Coração traspassado de Nosso Senhor.

       Os efeitos do Espírito de Amor, que se manifestou na Cruz e continua se manifestando no altar e na Eucaristia, tendem a afastar a alma do mundo, a lhe fazer desprezar as coisas passageiras e materiais para apegá-la às eternas e espirituais. A alma experimenta um grande horror ao pecado, uma contrição profunda de suas faltas e um desejo imenso de expiar por si mesma e pelos demais. Há que dar graças a Deus por nos comunicar seu espírito de amor e de vítima para a glória de seu Pai.

       Como é de se desejar que todos os membros da Fraternidade tenham sede da vida contemplativa, ou seja, desta visão simples e ardente à Cruz de Jesus; que todos adquiram o espírito de oração, de vida interior, a imagem de Nosso Senhor mesmo, que viveu trinta de seus trinta e três anos no afastamento do mundo!

       Os Superiores de Sociedades missionárias como a nossa, missionária pelas necessidades da desastrosa situação atual da Igreja, observam preocupados que alguns de seus membros, sacerdotes em particular, devorados pelo zelo do apostolado externo, chegam a abandonar o zelo do apostolado da oração, fermento e fonte do apostolado externo. O apostolado da oração é o apostolado essencial que nos une a Nosso Senhor, única fonte de graças de redenção. O apostolado externo, catecismos, reuniões, conferências, etc., se tornarão logo estéreis sem o apostolado fundamental que mantém uma união constante com Nosso Senhor.

       O zelo que não mantém o equilíbrio e o laço entre os dois apostolados é um falso zelo, um zelo humano, que não é humilde, porque se apóia sobre as qualidades e dons humanos. Os que praticam este zelo humano se expõem a cruéis decepções, a desânimos, a irritações, a impaciências. Seu apostolado já não tem origem sobrenatural. São como esse jardineiro que, levado pelo zelo de regar, puxa tanto a mangueira que esta se separa da válvula que provê a água. Estes, para dizer a verdade, condenam os contemplativos porque eles mesmos já não põem a contemplação como base de seu apostolado. A experiência está aí, e o desastre dos sacerdotes renegados o demonstra. Um sacerdote que não diz mais que sua Missa, acabará por dizê-la sem devoção, sem fé. Seu apostolado não trará fruto, e ele estará logo disposto a abandonar tudo.

       Por isso a Fraternidade oferece a seus membros uma estrutura, um regulamento, uma vida de comunidade, que os mantém no verdadeiro apostolado por meio de uma feliz harmonia entre a vida de apostolado espiritual e a vida de apostolado externo. Este foi o desejo de todos os fundadores de Ordens ou de Congregações apostólicas, conforme o que os mesmos apóstolos faziam: “Com isto poderemos dedicar-nos inteiramente na oração e na pregação da palavra” (At 6, 4).

+ Marcel Lefebvre
14 de janeiro de 1982


Artigo 5

       O espírito da Fraternidade é o espírito da Igreja, espírito de fé em Nosso Senhor Jesus Cristo e em sua Obra de Redenção. Toda a história da Igreja, ao longo dos últimos vinte séculos, manifesta os princípios fundamentais da Igreja, animada pelo Espírito Santo, Espírito de Nosso Senhor.

       O sacerdote está no coração desta Obra divina de regeneração e divinização das almas para sua glorificação futura. Todos os seus pensamentos, suas aspirações e suas ações devem estar inspiradas por este espírito de fé. Pois bem, este espírito de fé é essencialmente um espírito de contemplação de Jesus crucificado e glorificado. A fé é a semente da visão beatífica, que será a bem-aventurada contemplação eterna.

       Por isso a Igreja sempre estimulou as ordens contemplativas e as colocou na primeira classe das Sociedades religiosas. “Maria optimam partem elegit”. Ela insiste também na oração do sacerdote, em seu breviário, em sua oração cotidiana. Mas é evidente que se se trata aí de uma tarefa oficial prescrita pelo Direito Canônico, o que a Igreja deseja é que a alma do sacerdote seja inteiramente de Jesus, e que realize os quatro fins da oração: louvor, ação de graças, súplica e propiciação.

       A contemplação, ao ser um olhar de amor a Jesus crucificado e glorificado, transporta a alma às mãos de Deus: “In manus tuas commendo spiritum meum”. Isto se realiza somente por um completo abandono de nossa vontade nas mãos de Deus, ou seja, por uma obediência consumada a sua santa vontade; vontade significada por Deus e pelos que participam legitimamente de sua Autoridade e usam retamente de nossa existência: enfermidades, provas… Meditemos estes grandes ensinamentos da Igreja e esforcemo-nos por levá-las à prática em todas as circunstâncias de nossa vida.

       Isso exige de nós uma grande humildade; é o que explica a espiritualidade beneditina, inteiramente fundada no progresso da virtude de humildade.

       Se os ensinamentos da vida litúrgica são admiráveis e nos levam a uma maior santificação, as diretivas práticas da Igreja ao longo de sua história, a aprovação das fundações destinadas a santificar as almas, o exemplo dos santos que Ela nos apresenta como modelos, são outras tantas orientações preciosas para nossas almas. Seguindo-as, segundo a graça que Deus nos dá, estamos seguros de não equivocar-nos.

       Contemplação, obediência, humildade, são os elementos de uma mesma realidade: a imitação de Jesus Cristo e a participação de seu amor infinito. Oxalá estivéssemos animados destes sentimentos! Então, seja qual for o apostolado que nos é confiado, ou o resultado de nossos esforços, ou a comprovação de nossos limites e debilidades, teremos o consolo de compartilhar as alegrias e as penas de Nosso Senhor, que nos fará participar de sua paz e de sua serenidade. Tal é e sempre será o segredo da fecundidade do apostolado sacerdotal.

+ Marcel Lefebvre
26 de junho de 1982