Contribuição do Pe. Hélio Marcos da Silva Rosa para a reunião mensal dos padres de Campos.

I – O novo Código é o código do Vaticano II. Diversos cânones são incompatíveis com a doutrina tradicional da Igreja.

1 – É o Código do Vaticano II, com as mesmas novidades doutrinárias:

Não se trata de uma afirmação arbitrária nem forçada. Mas é o próprio Papa que promulgou o Código, João Paulo II, quem o diz na Constituição Apostólica de Promulgação do Código de Direito Canônico, 25 de janeiro de 1983:

“… O Código, não somente por seu conteúdo, como já por sua origem, traz em si o espírito desse concílio (…). O instrumento, que é o Código, combina perfeitamente com a natureza da Igreja, tal como é proposta, principalmente pelo magistério do Concílio Vaticano II, no seu conjunto e de modo especial na sua eclesiologia. Mais ainda este novo Código pode, de certo modo, ser considerado como um grande esforço de transferir, para a linguagem canonística, a própria eclesiologia conciliar“.

2 – Essas novidades doutrinárias são incompatíveis com a Tradição.

O próprio Papa, no referido documento, enumera algumas dessas novidades doutrinárias do Vaticano II “canonizadas” pelo novo Código: Igreja como povo de Deus, autoridade hierárquica como serviço, Igreja como comunhão, colegialidade, povo de Deus participando do tríplice múnus: sacerdotal, profético e régio; esforço que se deve consagrar ao ecumenismo.

O pe. Louis Coache denuncia essas novidades doutrinárias:

Acentua-se mais o homem do que Deus e seus direitos. A Igreja é antes de tudo apresentada como comunhão, numa insistência tal que atinge a heresia, quando omite valores hierárquicos. O termo comunhão é encontrado freqüentemente nos textos, mal definido, equívoco. Releva os leigos e minimiza os direitos da autoridade; uma insistência exagerada nas funções da mulher mostra que o direito novo está imbuído do espírito do mundo. Releva-se no novo Código um processo de democratização da Igreja, que corresponde à perda do sagrado: primado dado praticamente ao povo de Deus, importância fundamental dada aos leigos (às mulheres também), estiolamento da autoridade, do sacerdócio, redução das distinções entre o clero e o leigo; atenuação do sentido de Deus e do caráter absoluto da fé católica, idéias modernistas, protestantes e falsamente ecumênicas. O espírito ecumênico dá o tom a certo número de textos e encobre uma tendência ambígua de reconhecimento das heresias e das outras religiões. (Le D.C. est-il aimable? – p. 218 a 224).

Dom Antônio de Castro Mayer, em vários artigos denunciou também essa incompatibilidade de certos cânones do novo Código com a doutrina da Igreja. No dia mesmo da promulgação desse Código ele advertia, referindo-se ao Código:

Seria inadmissível na Igreja, por exemplo, uma eclesiologia articulada numa colegialidade que extenuasse, ainda que indiretamente, a plenitude do poder do Papa, como seria certa coarctação da atividade papal a pretexto de um outro poder paralelo igualmente supremo na Igreja, qual ao do colégio episcopal, que teria sucedido ao colégio apostólico. O mesmo se diga de organismos que limitariam de certo modo a jurisdição dos bispos nas suas dioceses, porquanto Jesus constituiu legítimos pastores de sua Igreja, apenas o Papa, sucessor de São Pedro, na Igreja Universal, com poder ordinário e imediato sobre bispos, clérigos e leigos, e os bispos, sucessores dos Apóstolos, cada um na sua diocese, e sempre em união com o Papa. Da mesma maneira, seria inadmissível uma equiparação entre o sacerdócio comum dos leigos e o ministerial dos padres, como se também aos leigos tocasse uma parte ativa na oblação do sacrifício eucarístico, ou uma competência própria ao ensino e governo da Igreja. Por direito divino, compete apenas à Hierarquia, ou seja, aos clérigos, o poder de governar, ensinar e santificar, na Igreja de Deus.” (Monitor 27/11/1983).

Na declaração conjunta com Dom Lefebvre, Dom Antônio adverte para “os erros, para não dizer heresias do novo Código”.

Eles se referiam especialmente ao grave o erro do c. 204 ao afirmar que a Igreja de Cristo subsiste na Igreja católica.

Portanto, as mesmas objeções e sérias restrições que temos contra o Concílio temos também contra o seu Código de Direito Canônico. Este faz parte de um todo com o Concílio, com a nova Missa, etc.

II – Na legislação matrimonial do novo Código, certos cânones são também incompatíveis com a doutrina tradicional.

1) Nova doutrinas das finalidades do matrimônio, incompatível com a doutrina tradicional:

Antigo Código, cn. 1013 *1. Matrimonii finis primarius est procreatio atque educatio prolis, secundarius mutuum adiutorium et remedium concupiscentiae“.

Comentário da B.A.C.: “Pelo dito se compreende que ambos os fins primário e secundário, não estão no mesmo plano. O fim primário está acima e a ele está subordinado o outro. Assim o declarou a S.C. do Santo Ofício, 1/4/1944 (AAS 36, 130), discrepando de certas teorias modernas, que sustentam que a procriação e educação não é fim primário essencial do matrimônio, ou não admitem a subordinação dos fins“. Veja-se também AAS 36 (1944) 179 s), DS. 1327, 3704, 3718 e 3838, AAS 43, (1951) 835-854, Pio XII.

O novo Código muda substancialmente esta doutrina: c. 1055 * 1 “A aliança matrimonial, pela qual homem e mulher constituem entre si uma comunhão da vida toda, é ordenada por sua índole natural ao bem dos cônjuges e à geração e educação da prole…“.

Comentário do Pe. Coache: “Os 111 cânones sobre este sacramento (matrimônio) começam com um erro na definição: o fim primário do matrimônio, que doutrinariamente sempre foi a geração e educação da prole, se acha suplantado pelo bem dos cônjuges… isso é muito grave… este cânon se opõe frontalmente ao c. 1013 do antigo Código“.

Essa mudança doutrinária afeta, de modo geral, a nova legislação matrimonial e mesmo a moral matrimonial. Parece que essa mudança é um reflexo da mentalidade egoísta de nossos dias: o bem estar dos cônjuges em primeiro lugar: “paternidade responsável” (limitação da prole).

2) A porta aberta para as declarações de nulidade, no mínimo duvidosas.

Pouco depois da promulgação do código, o Papa João Paulo II, em alocução à Rota Romana, declarava: “No novo Código… existem cânones de especial importância para o direito matrimonial que, forçosamente foram dados de maneira genérica, e esperam uma ulterior determinação, à qual a sólida jurisprudência rotal pode, sobretudo, trazer uma contribuição válida. Estou pensando, por exemplo na determinação do ‘defectus gravis discretionis iudicii’, dos ‘officia matrimonialia essentialia’, ou das ‘obligationes matrimonii essentiales’ a que se refere o cânon 1095” (AAS 76 [1984], 643.

O Cânon 1095 * 2 e 3: “São incapazes de contrair matrimônio… os que têm grave falta de discrição de juízo a respeito dos direitos e obrigações essenciais do matrimônio, que se devem mutuamente dar e receber; os que não são capazes de assumir as obrigações essenciais do matrimônio, por causas de natureza psíquica“.

Pe. Coache comenta: “O capítulo começa ‘ex abrupto’ por uma declaração sobre a incapacidade de contrair matrimônio de certos deficientes de ordem mental ou psíquica: tem-se aí uma boa imprecisão que vai autorizar e favorecer todas as tentativas de processo de nulidade!“.

Deste cânon surgiu a teoria da incapacidade relativa de contrair as obrigações essenciais do matrimônio, teoria hoje em tribunais eclesiásticos. Como aquele tribunal que julgou faltar ao demandado “dinâmica desta relação interpessoal harmoniosa e viável“; ou aquele outro que julgou que a demandada não possuía a aptidão de ouvir o outro, de se devotar a ele, de respeitá-lo de lhe mostrar um mínimo de affectus maritalis” (conf. Direito & Pastoral jul/dez 1994). Tudo isso com base no próprio cânon.

O cânon 1097, 2: “O erro de qualidade da pessoa, embora seja causa do contrato, não torna nulo o matrimônio, salvo se essa qualidade for direta e principalmente visada“.

Comentário de J.S. Hortal: “A declaração do parágrafo 2 muda substancialmente o que se encontrava no Código de 1917 (c. 1083) e que durante decênios, foi interpretado num sentido muito restritivo. Veja-se que agora nem sequer se exige que as qualidades sobre as quais se errou mudam substancialmente a personalidade falsamente conhecida do indivíduo… Além disso não é necessário que tenha havido uma colocação explícita como condição…“.

O cânon 1098: “Quem contrai matrimônio enganado por dolo perpetrado para obter o consentimento matrimonial, a respeito de alguma qualidade da outra parte, e essa qualidade, por sua natureza, possa perturbar gravemente o consórcio da vida conjugal, contrai invalidamente“.

J.S. Hortal analisa: “Basta que a sua falta (a qualidade da outra parte) possa perturbar gravemente, pela própria natureza das coisas, a vida conjugal. Que qualidades são essas? A esterilidade? A falta de virgindade?… A margem de apreciação que fica aqui para o arbítrio judicial é bastante ampla“.

Pe. Coache: “o can. 1098 foi redigido de maneira tão vaga que a porta se acha aberta para muitos processos pouco fundados“.

Assim, esses cânones escancaram as portas para anulações inválidas ou duvidosas. Os juízes modernistas e liberais se encarregam do resto…

Outros cânones da legislação matrimonial seguem a mesma linha de novidades: 1057 * 2, 1061 * 1 1086, 1127 e 1147 (ecumenismo), 1112 (laicização); 1134 (não fala da graça, mas de um robustecimento, sem excluir os que põem obstáculo).

Portanto, também na legislação matrimonial do novo Código há cânones incompatíveis com a doutrina tradicional, sobretudo, porque lesam os direitos divino e natural da indissolubilidade do matrimônio.

III – Os cânones do novo Código incompatíveis com a doutrina da Igreja não têm valor jurídico.

O erro não tem direito à existência, o direito divino está acima do direito meramente eclesiástico, o magistério de hoje não pode contradizer o de ontem.

Toda lei se ordena para a comum salvação dos homens e somente daí tem força e razão de lei, e, na medida em que falta a isso, não tem força de obrigar” (I-IIae, q. 96, a. 6).

Os canonistas afirmam unanimemente que a lei cessa “ab intrinseco“, de maneira absoluta, quando cessa seu fim adequado. Porque a lei deve ser útil ao bem comum, não nociva; quando ela se torna contrária ao fim, torna-se nociva; portanto cessa automaticamente. Ora, as leis incompatíveis com a doutrina da Igreja, são contrárias à sua finalidade, o bem das almas. Portanto, são nocivas e cessam de obrigar.

Sobre esses cânones do novo Código, incompatíveis com a Tradição, há um consenso nos meios tradicionais, de que eles não obrigam. Esta era a opinião de Dom Antônio, de Dom Lefebvre, a opinião da Fraternidade São Pio X. Pe. Coache, vai além, afirmando que todo o novo Código não obriga.

IV – Os católicos não devem resolver suas causas matrimoniais nos tribunais eclesiásticos que aplicam esses cânones incompatíveis com a doutrina tradicional.

A reserva das causas matrimoniais aos tribunais eclesiásticos (c. 1671-1673) é uma lei disciplinar, que, como toda lei eclesiástica, está sujeita ao direito divino: “salus animarum” e o vínculo matrimonial. Nenhuma autoridade tem o direito de manipular o direito eclesiástico contra o direito divino. Ninguém, nem o Papa, nem as Congregações Romanas, nem os Tribunais eclesiásticos, tem direito de usar sua autoridade, sua jurisdição para prejudicar as almas com os desvios doutrinários contidos no novo Código.

Ora, os tribunais eclesiásticos aplicam de maneira exclusiva esses cânones incompatíveis com a doutrina católica, com o agravo das largas interpretações dos juízes liberais de hoje. Esses cânones foram feitos propositalmente de maneira genérica, disse o Papa, para deixar margens para os juízes; que não perdem ocasião de dar sentenças de nulidade a casamentos válidos.

Em 1944, João Paulo II fez a reforma do regulamento de funcionamento da Rota Romana, para permitir a esse mais alto tribunal eclesiástico “mudar de marcha e realizar julgamentos mais rápidos”, para conceder nulidades matrimoniais. Tudo debaixo do sinal de “maior compreensão com os erros humanos”. Segundo o jornal espanhol “Sociedad” (15/5/1994), em 1993 se ditaram em todo o mundo 65.000 sentenças sobre casos de nulidade, das quais 63.000 receberam resposta positiva. “Na Espanha, as causas matrimoniais aumentaram espetacularmente“.

Segundo o advogado especialista em casos de nulidades matrimoniais, na Espanha, Pablo Javier Lopez, “as razões de nulidades admitidas pelos tribunais eclesiásticos são tão numerosas e tão amplas que, se se aplicam estritamente todos os requisitos exigidos pelo Direito Canônico, quase todos os matrimônios católicos se poderiam declarar nulos“.

Nos Estados Unidos, o escândalo das “anulações” é tão grande que Sheila Kennedy, inconformada com o processo religioso movido por seu marido, que culminou com o decreto de “nulidade” num tribunal eclesiástico, fez um movimento de protesto. E publicou um livro “Shattered Faith“, a propósito da anulação de casamentos. No livro ela afirma que a 90 % dos casos levados aos tribunais eclesiásticos é concedida a nulidade.

O que se pode esperar da Rota Romana, supremo tribunal da Igreja, reformado pelo Papa e ocupado por juízes modernistas, tendo à mão esse novo Código?

Além disso, há perigo para a fé dos católicos nesses longos processos nos tribunais eclesiásticos, pelo contato direto com bispos e padres progressistas, que não deixarão de exigir o engajamento destes católicos em suas fileiras. Porquanto esses processos tramitam sempre através do pároco e do bispo diocesano. Esse perigo é ainda mais grave quando se trata de pessoas simples, rudes, ou neo-convertidas.

Portanto, a lei que reserva aos tribunais eclesiásticos as causas matrimoniais, embora seja uma lei justa, nesse caso particular de manipulação do Direito para a aplicação de leis nocivas, ela também não obriga. Aplica-se aqui a mesma doutrina que serve de base a todo o nosso apostolado atual: “o grave incômodo espiritual”, o perigo para a salvação das almas, pelo contato com os progressistas e pela aplicação de leis nocivas.

Solução

Qual seria, então, a solução para as causas matrimoniais, sem o recurso a esses tribunais?

Existe a grave obrigação dos padres e bispos tradicionais de subtrair os fiéis da aplicação de leis nulas e nocivas, das sentenças de juízes que tornam ainda mais nocivas essas leis; subtrair os fiéis de um nocivo contato com os progressistas nestes processos; e, ao mesmo tempo, têm a obrigação de solucionar os diversos casos de consciência provocados pelas causas matrimoniais, defender o vínculo matrimonial, posto em perigo pela nova legislação. Diante deste estado de necessidade, sem ter a quem recorrer, nossos bispos e comissões canônicas, fundamentados nos princípios gerais que regem toda a vida da Igreja, têm poderes da própria Igreja para julgar as causas matrimoniais, defender o vínculo matrimonial, defender o direito divino contra o direito eclesiástico sacrilegamente manipulado pelas autoridades.

De um lado temos a Sacra Rota Romana, os tribunais eclesiásticos oficiais, o próprio Papa e as demais autoridades eclesiásticas, com o Direito novo, violando o vínculo matrimonial, atentando contra o direito divino; de outro lado nossos bispos tradicionais com suas comissões, extra-oficiais e provisórias defendendo o vínculo matrimonial, o direito divino, a salvação das almas. Seria absurdo supor que a Igreja daria jurisdição àqueles e a negaria a estes. Seria absurdo supor que a Igreja dá jurisdição para alguém agir contra o direito divino, e nega a jurisdição àqueles que querem defender esse mesmo direito divino. É um raciocínio simples de qualquer católico que crê na santidade indefectível da Igreja.

Seria ridículo e nefasto legalismo pretender exigir neste caso uma base explícita, na letra do Direito, pois estamos numa situação única e imprevisível no passado. Basta então apelar para os princípios gerais do Direito.

O bom senso e, mais ainda a graça de estado, sugeriram a Dom Lefebvre e à Fraternidade a ereção de comissões com poderes análogos aos tribunais eclesiásticos. Estando a Fraternidade espalhada por todo o mundo e contado com uns 300 padres, dispersos em países descristianizados como EUA, Suíça, Alemanha, onde são muito freqüentes os casos de pessoas que se convertem depois de mais de um “matrimônio”, depois de declarações de nulidade, no mínimo duvidosas, dos tribunais eclesiásticos, era mais do que prudente centralizar e reservar a solução desses casos para essas comissões. Como também poderia haver comissões para tratar das questões litúrgicas, comissões de teólogos para examinar as doutrinas à luz da doutrina perene da Igreja. É a auto-organização do apostolado, necessária nesses tempos de crise. A Santa Igreja dá poderes a nossos bispos, padres e comissões, para todos esses casos, para o bem das almas.

Como afirma Dom Bernard Tissier de Mallerais, presidente da comissão Canônica da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, “nossos tribunais de suplência não criam um direito, apenas constatam um direito: é o nível mais baixo do exercício da jurisdição. Mesmo uma sentença rotal não passa para o estado de coisa julgada; ela pode sempre ser de novo posta em causa. Julgar causas em terceira instância não é usurpar um poder do Papa: na Espanha e na Alemanha, há uma “rota” para julgar em terceira instância“.

Salus animarum suprema lex

Base jurídica para a solução das causas matrimoniais sem recurso aos tribunais oficiais

Mas não haveria, no Direito, uma garantia de que a Igreja dá jurisdição aos bispos e às comissões canônicas para julgarem as causas matrimoniais?

O Direito Canônico não prevê, nem poderia prever o caso único na história, em que um Papa, a maioria dos bispos, as cúrias romanas e diocesanas, os tribunais eclesiásticos estivessem todos conspirados em revolucionar totalmente a liturgia, a doutrina, a legislação eclesiástica. O Legislador não poderia prever que, no futuro o próprio Papa viesse a revolucionar o direito, com leis nocivas às almas e contrárias ao direito natural e divino positivo. Não poderia prever este caso de extrema necessidade, em que os fiéis não têm a quem recorrer, a não ser a um pequeno grupo de bispos e padres tradicionais, sem os poderes ordinários de jurisdição. Por isso, o Direito não estabelece explicitamente a solução para os casos ocorridos nesta situação calamitosa.

Nullus est Codex adeo diligenter elaboratus, ut omnia quae in vita iuridica societatis ocurrere possunt sint expresse previsa; insuper lapsu temporis novae exoriuntur relaciones iuridicae cui ius positivum normam dare debet nec potuerunt a legislatore provideri et tamen quivis casus particularis in vita iuridica occurrens debet per iudices, ubi ad ipsos recurritur decidi non arbitraria ratione sed secundum iuridica principia, quae dum silentio codicis non suppedientur, opus est ut saltem ad ipso tradatur modus legitimus explendi necessarias et inevitabiles lacunas“. (Wernz-Vidal t. 1, p. 241-242).

E esses canonistas citam Santo Tomás: “Nullius hominis sapientia tanta est, ut possit omnes singulares causas excogitare: et ideo non potest sufficienter per verba sua exprimere quae conveniunt ad finem intentum; et si potest legislator omnes casus considerare, non opporteret ut omnes exprimeret propter confusionem vitandam; sed legem ferre debet secundum ea quae in pluribus accidunt” (I, II q. 96 a. 6 ad 3).

Mesmo assim o Código parece dar a base jurídica para a solução das causas matrimoniais nesta impossibilidade total de recurso aos tribunais eclesiásticos.

Já sabemos que a Igreja supre a jurisdição, nos casos de necessidade, para o matrimônio e para a Confissão. Isso está explícito no Código. Mas a finalidade desta suplência é o bem comum, a salvação das almas. Portanto, nos outros casos em que se faz necessárias a jurisdição para o bem comum, para a salvação das almas, a Igreja supre também.

Este raciocínio toma por base o direito supletório, do cânon 19.

Direito Supletório

C. 19 (antigo c. 20): “se a respeito de uma determinada matéria falta uma prescrição expressa da lei, universal ou articular, ou um costume, a causa, a não ser que seja penal, deve ser dirimida levando-se em conta as leis dadas em casos semelhantes, os princípios gerais do direito aplicados com equidade canônica, a jurisprudência e a praxe da Cúria Romana, a opinião comum e constante dos doutores“.

Wernz-Vidal definem: “Ius ergo suppletorium est ius applicandum in particularibus casibus, cum circa illud non habeatur in Codice prescriptum quod peculiari illi casui sit applicandum.

São inevitáveis as lacunas jurídicas, para suprir esta falta de legislação explícita. O c. 19 estabelece os recursos: leis dadas em casos semelhantes, princípios gerais do direito, praxe da Cúria e opinião dos doutores, canonistas. Só há uma exceção, a aplicação de penas.

1) as leis dadas em casos semelhantes (analogia legal): a disposição do direito para outros casos aplica-se para um caso semelhante, sobre o qual a lei nada dispõe explicitamente. Fundamenta-se na exigência do próprio direito e na sua igualdade, a qual exige que, faltando uma regra positiva, coisas semelhantes se rejam pelo mesmo direito: “in similibus idem est iudicium“;”ubi eadem est ratio, illic idem ius“;

2) os princípios gerais do direito, aplicados com equidade canônica (analogia iuris): A analogia legal é tirada de leis semelhantes, contidas no próprio Código; ao passo que a analogia de direito é tirada de princípios canônicos, contidos implícita ou explicitamente no Código; de princípios de direito positivo universal comuns a todo direito; e de direito natural.

Supõe-se, na aplicação destes princípios, a equidade canônica.

Equidade canônica é o espírito de benignidade que informa a legislação canônica e que deve também orientar a aplicação dos princípios aos casos particulares. Pois, não é possível que o legislador queira sempre aplicar automaticamente a lei: “summum ius, summa iniuria“.

A equidade canônica da parte do legislador supõe no súdito a epiquéia.

Epiquéia é aquela interpretação da lei, pela qual, contra as palavras mesmos claras da lei, mas segundo a mente do legislador, exime-se prudentemente, em algum caso, da disposição da lei. (Vermeersch, n. 96).

O uso da epiquéia é obrigatório quando não se pode observar a lei sem cometer pecado ou sem grande e proporcional grave incômodo; porque, em ambos os casos, o legislador estaria impondo uma obrigação acima de seu poder; é necessário usá-la também quando prudentemente se pode julgar que o legislador não quis compreender na lei aquele caso, embora “de iure” o que pudesse compreender (Coronata) n. 191).

3) a praxe da Cúria Romana: significa o modo constante de proceder da Cúria, quer judicial, quer extrajudicial;

casos?

Aplicação do direito Supletório ao caso presente

Estamos diante do caso de necessidade atual, de se resolver as causas matrimoniais sendo impossível o recurso aos tribunais tomados pelo modernismo. Então recorremos aos:

1) lugares paralelos: a todos aqueles lugares em que a Igreja dá ou supre a jurisdição nos casos de necessidade, quando é impossível o recurso à autoridade. Exemplo, o omnia parata do c. 1080, que o Santo Ofício permitiu interpretar não em sentido exclusivo, mas em todos os casos de urgente necessidade, AAS XXXIV, p. 241.

2) princípios gerais do direito: tais como: salus animarum suprema lex, sacramenta propter homines, lex ecclesiastica non obligat cum gravi incommo, necessitas caret lege. A equidade canônica que se deve supor no Legislador, leva-nos a uma correta e necessária epiquéia: se ele tivesse conhecimento da situação de necessidade, não urgiria o recurso aos tribunais e daria diretamente jurisdição a nossas comissões para julgar as causas matrimoniais e defender o direito natural e divino da indissolubilidade do vínculo matrimonial.

3) parecer dos doutores: Capello afirma que, no estado de necessidade comum e mesmo particular, quando é impossível o recurso à Santa Sé e ao Ordinário, cessam os impedimentos de direito eclesiástico que a Igreja costuma dispensar “quia merito censetur suspendi ex benigna mentis legislatoris interpretatione” (De Matr. n. 199). Capello diz ser esta a opinião de outros autores: Gaparri, Becker, S. Afonso, Sanches, Feije, Pighi; e cita ainda documentos do Santo Ofício que declararam válidos os matrimônios realizados na China, com impedimentos dirimentes de direito eclesiástico e até sem a forma canônica, sem os devidos recursos.

À pergunta se os fiéis da China comunista, num caso de impedimento matrimonial, podiam se casar, pois não havia possibilidade de recurso, ou deviam abster-se do matrimônio ou adiá-lo, a resposta de 27/1/1949 foi: “In expositis circunstantiis, matrimonia sine forma canonica et cum quovis impedimento iuris ecclesiastici a quo Ecclesia dispensare solet habenda eset ut valida” (China Missionary 4/4/1949, p. 417).

Outra pergunta foi se os cristãos chineses que, por necessidade grave, tiveram de se mudar para regiões distantes, onde só há pagãos, podem casar-se sem dispensa do impedimento de disparidade de culto, que é impossível obter. Resposta: In propositis circunstantiis, non esse inquietandos Collet. S.C. de Prop. Fidei, I n. 1062.

Vê-se que não é intenção do legislador fazer valer as leis eclesiásticas quando é impossível observá-las.

Capello afirma ainda que, nesses casos em que é impossível o recurso à Santa Sé ou ao Bispo, o padre poderia dispensar do impedimento por uma epiquéia.

Ora, a dispensa de impedimentos é um caso mais grave do que as declarações de nulidade de casamento nos tribunais. Porque a dispensa de impedimentos dirimentes envolve diretamente a validade do sacramento; a sentença de declaração de nulidade apenas confirma se houve ou não contrato válido, sacramento.

Portanto, dada a impossibilidade de recuso aos tribunais oficiais e à Sacra Rota, nossos bispos ou comissões podem julgar as causas matrimoniais.

4) praxe da Cúria Romana: a Cúria Romana, como vimos acima, considerou válidos os casamentos realizados com impedimento dirimente, na impossibilidade do recurso; pelo mesmo motivo deverá considerar válidas também as sentenças das comissões canônicas da tradição.

Casos semelhantes

Dom Lefebvre nas Sagrações declarou: temos o mandato da Igreja Romana, sempre fiel à Tradição que recebeu dos apóstolos…; o Papa não pode deixar de querer bons bispos para a Igreja. E, note-se, a eleição dos bispos é da mais estrita jurisdição do Papa. Quem usurpa essa jurisdição fica automaticamente excomungado. E Dom Lefebvre e os bispos por ele sagrados não ficaram excomungados, justamente porque não houve usurpação de jurisdição; mas suplência, por parte da Igreja, devido ao urgente e gravíssimo estado de necessidade. As sagrações dos bispos tradicionais se basearam nos princípios gerais do direito.

Santo Atanásio, devido ao estado de necessidade, instituiu bispos além dos limites normais de sua jurisdição, quando estava fora de sua sede episcopal. Na carta que escreveu a Serapião, bispo de Tumis, durante o segundo exílio (339 a 346), ele instituiu 14 bispos para substituir seus antecessores que haviam falecido (Patr. Graeca, t. 26 col. 1412-1413).

Santo Eusébio de Samosata, conforme testemunho de Teodoreto, bispos de Cyr, no sec. V: “Com efeito, tendo compreendido que muitas igrejas ficavam sem pastores, ele, vestido de roupa de soldado e com a cabeça coberta por um turbante, percorreu a Síria, a Fenícia e a Palestina impondo as mãos a padres e diáconos; se encontrava bispos que tinham a mesma doutrina que ele, designava-os também como chefes destas igrejas carentes” (Migne – L. IV, c. 12; Patres Graeci 82 col. 1148).

São Teodoro Estudita (759-826) assim comenta esta atitude de Santo Eusébio e de Santo Atanásio: “Em razão de imperiosas necessidades, nem tudo, em momentos críticos onde campeia a heresia, se faz exatamente conforme foi estabelecido em tempo de paz. Ora, eis precisamente o que o bem-aventurado Atanásio e o muito santo Eusébio fizeram manifestamente: ambos impuseram as mãos fora dos limites. Agora também vê-se que a mesma coisa se passa na heresia presente” (Migne vol. 99 col. 1645-1648).

Nota: São Teodoro Estudita se refere à heresia iconoclasta à qual aderiram quase todos os bispos orientais de seu tempo, por pressão de Constantino, filho de Leão Isáurico. Constantino chegou a convocar um concílio com 338 bispos, no qual condenaram o culto das imagens e anatematizaram S. João Damasceno.

Poderíamos hoje repetir as palavras de S. Teodoro Estudita: “a mesma coisa se passa na heresia presente“; e podemos assegurar que a situação é incomparavelmente mais grave, pois envolve todos os setores da Igreja.

Portanto, conforme o exemplo destes santos, que agiram fora dos limites de sua jurisdição, ordinária, no caso de necessidade, nós também podemos e devemos fazer o mesmo, para o bem das almas.

Suponhamos um caso bem real de um bispo, não residencial, sem jurisdição ordinária, num país de perseguição, sem qualquer contato com Roma. O próprio bom senso mostra que ele deveria organizar seu apostolado, permitindo as almas se beneficiarem de todos os socorros da Igreja, inclusive instituindo, com seus padres, comissões para julgar as causas matrimoniais tão comuns no exercício do apostolado. Quem seria tão insano e ridículo de argüi-lo de cisma por usurpação de jurisdição?

Este caso é bem real no nosso século, entre os bispos clandestinos nos vários países comunistas. A revista 30Dias revelou as atividades apostólicas de uma série destes bispos. Veja-se o que diz sobre o episcopado clandestino da Ucrânia: “O episcopado ucraniano é o mais ‘organizado’ em matéria de sagrações. Todos os bispos têm uma diocese com bispos auxiliares ou coadjutores com direito a sucessão. Mas é uma auto-organização provisória, que pode sofrer alterações concordadas com a Santa Sé…” (com o cessar da perseguição, evidentemente, ou seja quando cessar o estado de necessidade) 30Dias, março de 1990.

Com toda certeza, esses bispos têm seus tribunais que julgam as causas matrimoniais, inclusive reservadas a Sacra Rota. Em todo caso, eleger e sagrar bispos, designá-los como ordinários ou coadjutores, com territórios e súditos próprios, tudo isso é de estrita jurisdição do Papa, ao passo que julgar causas, mesmo em terceira instância não é da estrita jurisdição do Papa.

Nós também temos uma auto-organização provisória, enquanto dura a crise na Igreja. Quando a crise for superada, essa auto-organização estará inteiramente nas mãos da Santa Sé, que poderá simplesmente dissolvê-la.

Eis nossa auto-organização para o bem das almas: sagração de bispos, ordenações de padres (sem cartas demissórias), fundação de seminários, conventos, congregações religiosas, paróquias, comissões com poderes de julgar as causas matrimoniais analogicamente aos tribunais eclesiásticos.

Objeção: A maior necessidade da Igreja hoje é de um Papa conforme a doutrina de sempre. Se o estado de necessidade justifica a sagração de bispos, a criação de comissões com poderes análogos aos tribunais eclesiásticos, não justificaria também a eleição de um Papa? Os tradicionalistas não estariam caminhando para isso?

Respondemos: Nós, Dom Lefebvre, Dom Antônio, a Fraternidade Sacerdotal São Pio X, os padres de Campos, não somos sedevacantistas. A Igreja tem um Papa e um só Papa e este Papa hoje é João Paulo II. A eleição de um papa seria cismática, porque esse novo papa, melhor anti-papa, estaria usurpando a suprema jurisdição na Igreja. Nós rejeitamos terminantemente qualquer idéia ou intenção de cisma. “Não é de modo algum no espírito de ruptura e de cisma que nós realizamos estas sagrações. Nós afirmamos nossa adesão e submissão à Santa Sé e ao Papa” (Declaração de Dom Lefebvre nas Sagrações, em 1988).

Jurisdição presumida

Jurisdição presumida é aquela que envolve uma autorização ou delegação que no presente não existe, se bem que sua concessão não seja oposta à mente do Superior e este certamente a concederia se conhecesse a razão que há para se usar dela (Comentário da B.A.C. ao c. 209).

Vê-se que a jurisdição presumida é baseada na eqüidade canônica que inspira a mente do Superior e na epiquéia da parte do súdito.

É lícito recorrer-se à jurisdição presumida, quando o caso é urgente e não se pode recorrer ao Superior, e de tal natureza que, sem a retificação do Superior o ato é de si válido: batizar, confirmar… Quando o caso, além de muito urgente é grave, pode-se recorrer à jurisdição presumida mesmo quando a validade do ato depende da futura aprovação do superior (B.A.C. ibidem e Wernz-Vidal c. 209).

Assim, se nossos bispos e comissões não tivessem nem mesmo a jurisdição extraordinária “quam suplet Ecclesia“, teriam pelo menos esta jurisdição presumida de que falam os canonistas. No futuro, quando o Papa ab-rogar essas leis nocivas às almas e ao vínculo matrimonial, ele mesmo ratificará as sentenças judiciais de nossas comissões provisórias e extra-oficiais que defendem o vínculo matrimonial e a salvação das almas nesse período de crise.