No próximo outono, acontecerá, em Roma um Sínodo extraordinário dos bispos sobre o tema da família, em especial sobre os problemas da família cristã no mundo marcado pelo secularismo: concubinato, divórcio, contracepção, etc. Em um questionário especial enviado por Roma em outubro passado, os bispos deveriam responder sobre a moral do matrimônio. Em alguns países, em particular naqueles de língua alemã, os bispos transmitiram o questionário a alguns fiéis escolhidos, que responderam conforme se esperava.

 

As respostas mostram em quão adiantado processo de degradação se encontra a moral do matrimônio cristão no povo outrora cristão. Sobre a pergunta: “Vós sentistes culpa alguma vez por ter usado os chamados métodos contraceptivos não permitidos?” 86% responderam não, e 14% sim. Pergunta seguinte: “Vós vos afastastes da Comunhão por isso?” Nesse caso 90% responderam não, e 10% sim. Na diocese de Aquisgrão deu-se como resultado que “a moral sexual e matrimonial da Igreja” constituía “para muitos um obstáculo à fé”. Na diocese de Bamberg as respostas “refletiram uma posição crítica contra a moral do matrimônio”. Na diocese de Essen os interrogados estavam dispostos “a tornar possível uma bênção especial para os casais do mesmo sexo”. Na diocese de Friburgo de Brisgóvia, “viver em concubinato antes do matrimônio religioso não é exceção, mas o caso habitual”. Na diocese de Colônia “se considera que a doutrina da Igreja está em ruptura com o mundo contemporâneo e suas relações normais”. Na diocese de Magdeburgo “a Igreja perdeu seu estatuto de referência no campo do matrimônio e da família”. Na diocese de Mainz, “praticamente todos rejeitam a condenação dos métodos artificiais de regulação da fertilidade ou a consideram sem importância”. Na diocese de Osnabruque, “são cada vez mais numerosas as pessoas que dão as costas à Igreja”. Na diocese de Rotemburgo, “considera-se um delito proibir o uso dos preservativos”. Na diocese de Tréveris, os fiéis consultados esperam “um gesto de misericórdia nas questões matrimoniais, nos fracassos, no recomeço de uma relação e na sexualidade”.[1]

 

O papel nefasto do Cardeal Kasper

 

O Santo Padre havia convocado, para a semana de 17 a 22 de fevereiro, um consistório dedicado particularmente a preparar o próximo sínodo de bispos. O Papa tinha designado como único orador o Cardeal Kasper, o qual, na quinta de 20 de fevereiro, pela manhã, realizou uma conferência detalhada diante dos demais cardeais. Antes de examinar com mais atenção sua intervenção, gostaríamos de conhecer mais a fundo as posições teológicas do seu autor.

 

Walter Kasper nasceu em 1933. Em 1957 foi ordenado sacerdote, orientando-se logo aos estudos universitários. Depois de ter sido assistente de Hans Küng, foi professor de teologia, e em 1989 foi nomeado bispo da diocese de Rotemburgo-Stuttgart.  Em 1993 lançou, junto com Dom Lehmann, hoje cardeal, e com o Arcebispo de Friburgo Dom Saier, hoje falecido, uma primeira ofensiva para introduzir a comunhão sacramental dos divorciados “recasados”, a qual foi firmemente rejeitada pelo Cardeal Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Em 1999 Dom Kasper foi convocado a Roma para ocupar o cargo de secretário do Conselho Pontifício para a Unidade dos Cristãos; pouco tempo depois, seria nomeado seu presidente. Durante o mesmo ano, colaborou amplamente na elaboração e na assinatura da Declaração comum de Augsburgo entre católicos e protestantes. Em 2010 apresentou sua demissão em razão de sua idade; entretanto, ao ficar vacante a sede pontifícia, o Cardeal Bergoglio encontrou nele um decidido defensor para sua elevação à cátedra de Pedro.

 

Observemos agora a obra acadêmica do Cardeal Kasper. Em 1967, ele declarava em um artigo: “Esse Deus que reina como um ser imutável por cima do mundo e da história constitui um desafio para o homem. Por amor ao homem é preciso negá-lo, já que reclama para si mesmo a dignidade e a honra que são devidas ao homem. […] Devemos nos defender contra tal Deus, não somente por amor ao homem, mas também por amor a Deus. Esse não é o Deus verdadeiro, é um mísero ídolo. Um Deus, pois, que se acha à margem e por cima da história, que não é Ele mesmo história (grifo nosso), é um Deus limitado. Se designarmos esse ser como Deus, deveríamos, por amor ao Absoluto, fazer-nos ateus. Um Deus assim corresponde a uma visão fixista do mundo; é a garantia das coisas estabelecidas e o inimigo das novidades“.[2]

 

Em seu livro Einführung in den Glauben, Kasper afirma que os dogmas podem ser “unívocos, superficiais, discutíveis, estúpidos e precipitados.[3]

 

Em sua obra Jesus der Christus, ele escreve sobre a narração dos milagres do Novo Testamento: “Graças ao método crítico, pode-se comprovar uma tendência a aumentar os milagres, a exagerá-los e a multiplicá-los. […] Isso reduz consideravelmente o conteúdo dos Evangelhos nas narrações dos milagres“[4]. Para ele, as narrações dos milagres têm sua explicação em uma “transposição de motivos não cristãos na pessoa de Jesus, com o fim de destacar sua grandeza e seu poder. […] A partir do método histórico-crítico, algumas narrações dos milagres aparecem como projeções retrospectivas de experiências pascais integradas na vida terrena de Jesus, respectivamente como representações antecipadas do Cristo glorificado“[5]. Isso se aplica, por exemplo, às ressurreições da filha de Jairo, do filho da viúva de Naim e de Lázaro. “Dessa forma, os milagres referentes a naturezas físicas, são o resultado de acréscimos posteriores à tradição original” [6].

 

Quanto à narração mais antiga da ressurreição de Jesus (Mc 16,1-8), o Cardeal Kasper assevera “que não se trata de um relato histórico, mas de uma figura de estilo destinada a chamar atenção e gerar expectativa“[7]. Kasper dissolve assim não só a fé na Ressurreição de Nosso Senhor, mas o dogma cristológico em seu conjunto. Diz: “Segundo os evangelhos sinóticos, Cristo jamais se faz chamar filho de Deus; isso demonstra, indubitavelmente, que a afirmação de sua filiação divina nasce da fé da Igreja“[8]. Outra afirmação: “Provavelmente Jesus nunca se designou como messias, nem como servo de Deus, nem como filho de Deus, e tampouco como filho do homem. [9]O dogma segundo o qual Jesus “é verdadeiro homem e verdadeiro Deus” é, de acordo com ele, “superável” [10]. Não é isso modernismo em seu sentido mais próprio e puro? E esse homem foi designado pelo Papa para apresentar ao consistório uma visão da família e dos graves problemas que a afligem hoje em dia! Semelhante fé modernista poderia servir de base a uma moral cristã? Que resta, pois, do temor de Deus, fundamento da sabedoria (cf. Salmo 109)?

 

Conferência do Cardeal Kasper de 20 de fevereiro de 2014 no Consistório

 

Voltemos agora à sua última conferência, que foi publicada pela Herder Editorial em 10 de março, justamente antes da assembleia da Conferência Episcopal Alemã… Seria ingenuidade ver aqui uma pura coincidência.

 

Na primeira parte, o Cardeal trata da família na ordem da criação e da redenção; fala das consequências do pecado na vida da família, e da família como igreja doméstica. É possível encontrar ali um ou outro bom pensamento; assim, lemos (pág. 42): “O coração renovado pede para estar sempre novamente formado e pressupõe uma cultura do coração; A vida de família deve ser cultivada segundo as três palavras-chave do Santo Padre: por favor, obrigado, perdão. É preciso dedicar tempo ao outro e celebrar o sabbat, ou seja, o domingo juntos; urge praticar incessantemente a indulgência, o perdão e a paciência; são necessárias incessantes manifestações de benevolência, de estima, de delicadeza, de agradecimento e de amor. A oração em família, o sacramento da penitência e a celebração comum da eucaristia constituem uma ajuda para fortalecer incessantemente o laço matrimonial, pelo qual Deus uniu os esposos. Sempre é gratificante encontrar esposos anciãos que se sentem assim, apesar da idade, apaixonados, apaixonados com um amor maduro. Eis aqui também um sinal de uma existência humana redimida“. Agora, a família é verdadeiramente “o caminho da Igreja“, como pretende o Cardeal no fim do capítulo quarto? Não é, antes, a Igreja que é o caminho da família?

 

Entretanto, o acento principal está posto, sem dúvida, sobre o problema dos divorciados “recasados”, no capítulo quinto da conferência. O cardeal tem razão quando comprova que o aumento significativo de famílias destruídas constitui uma verdadeira tragédia para o futuro da Igreja, mas é escandaloso que não mencione as razões profundas de tal crescimento: uma catequese do matrimônio adulterada, recortada ou mesmo falsificada, ou ainda mais, uma omissão total da pregação – não só durante alguns anos, mas por décadas – sobre a santidade do vínculo matrimonial, imagem do vínculo entre Cristo e sua Esposa mística, a Santa Igreja, e daí sobre sua indissolubilidade. A esse respeito, é preciso acusar com firmeza os bispos de terem descuidado, de maneira culpável, seu ministério de doutores da fé e dos costumes em suas respectivas dioceses. Para dar um só exemplo: jamais se escutou o Cardeal Kasper, quando bispo de Rotemburgo, defendendo oportuna e importunamente a indissolubilidade do matrimônio em seus sermões, catequeses e conferências.

 

Nosso conferencista tem toda a razão quando diz que se pode “admirar e apoiar o heroísmo de esposos abandonados que permanecem sós e que devem desenvolver-se na vida” (página 55). O cristianismo reclama de tempos em tempos, de fato, esse heroísmo, heroísmo que, se não é possível às forças humanas, se faz possível com o concurso da graça divina como o prova ainda hoje a conduta de muitos esposos abandonados, que permanecem fiéis apesar de tudo. São Paulo dizia nesse sentido: tudo posso naquele que me fortalece (Fil. 4,13).

 

No entanto, algumas frases do Cardeal Kasper são simplesmente surpreendentes: “Muitos casais abandonados devem formar uma nova relação para o bem dos filhos, contrair matrimônio civil, ao qual não podem renunciar depois sem pecado. Muitos, depois de terem vivido amargas experiências, encontram nessas novas uniões uma felicidade humana, e mais ainda um presente do céu” (pág. 55, grifo nosso). Digamos claramente: uma “nova relação” com essas características está e sempre estará em contradição com a indissolubilidade do matrimônio, e constitui um grave pecado. E, embora seja certo que as crianças nascidas de tais uniões não possam ser abandonadas sem mais nem menos, a Igreja em sua sabedoria sabe responder a essas situações concretas com soluções que respeitam a lei moral universal. De nada serve recordar, depois de abrir semelhante brecha, que “a indissolubilidade do matrimônio sacramental e a impossibilidade de levar a cabo um segundo matrimônio sacramental durante a vida do primeiro dos cônjuges forma parte da tradição da fé da Igreja” (pág. 55).

 

Um pouco depois o Cardeal irá mais fundo, mostrando sua linha de pensamento: “Encontramo-nos hoje em uma situação similar à do último Concílio, onde havia a questão do ecumenismo ou da liberdade religiosa. Naquele momento parecia que as encíclicas e as decisões do Santo Ofício bloqueavam o caminho a seguir; mas nesse momento o Concílio abriu as portas sem tocar a tradição dogmática definitiva” (pág. 57). Precisamente disso se lamenta a Fraternidade São Pio X há anos: o Concílio abriu as portas ao erro e provocou assim grande parte da ruína pós-conciliar. Porém, Kasper justifica esse “desenvolvimento ” com uma “hermenêutica ao mesmo tempo jurídica e pastoral” (pág. 60).

 

Nosso orador recorda que o Papa Bento XVI concedera aos divorciados “recasados” não a comunhão sacramental, mas a espiritual; assim, o Cardeal se pergunta por que não poderiam receber igualmente a sacramental. A resposta é simples: a comunhão espiritual supõe o arrependimento das próprias faltas que implora a Deus a ajuda necessária para sair de tal situação, enquanto a admissão à comunhão sacramental aprovaria o estado de pecado, abençoaria o divórcio e o concubinato, e conduziria o pecado à sua ruína temporal e eterna. Por outro lado, essa observação se aplica também ao “tempo de penitência” proposto pelo Cardeal, antes que os divorciados “recasados” possam receber a santa comunhão: a penitência, assim como o arrependimento, deve estar acompanhada do firme propósito da emenda de vida, sem a qual o arrependimento não tem valor nenhum. Acaso o Espírito Santo não o revelou, pela boca do apóstolo São Paulo, ao dizer que aquele que come e bebe indignamente, quer dizer, aquele que recebe a comunhão sacramental em estado de pecado grave, come e bebe sua própria condenação (1Cor 11,29)? Pode-se pensar numa crueldade maior com as almas e num dano ainda maior para a doutrina da Igreja? O mesmo Compendium do “Catecismo da Igreja católica” conta (pág. 242) entre as obras de misericórdia espiritual – neste ponto está de acordo com a Tradição católica – o de repreender os pecadores. Isso nos faz comprovar que os homens da Igreja perderam de vista quase por completo a salvação das almas. Pareceria que o Cardeal não sabe distinguir entre a rejeição do pecado e a misericórdia ao pecador. Em sua resposta às objeções de seus colegas cardeais, ele pretende que a misericórdia é “um princípio hermenêutico para a interpretação da verdade” (pág. 79) – com semelhante argumento se podem franquear todos os dogmas – e para isso alega a epiqueia (pág. 82). Eis, porém, que a epiqueia não pode caber aqui. De fato, a epiqueia consiste em suspender a aplicação de uma lei humana com o fim de respeitar o espírito em um caso concreto e excepcional, não expressamente previsto pelo legislador, o qual nesse caso preciso dispensaria da obrigação em razão da grande dificuldade ou dos danos que disso resultariam. Ora, a lei que está em jogo aqui é a lei natural e seu autor é Deus Criador, para quem nada é excepcional e que desde toda a eternidade tem conhecimento de todos e de cada um dos divórcios da história do homem. A epiqueia não pode ser, então, de nenhuma maneira aplicada contra essa proibição, pois não depende de uma lei humana, mas de uma lei divina.

 

A atitude do Papa

 

Na tarde de 20 de fevereiro, viveu-se no consistório um clima de contradição e de ataques bastante fortes contra a conferência do Cardeal Kasper. Não obstante, no sábado pela manhã o Papa Francisco prodigou elogios ao cardeal alemão. Durante a abertura do segundo dia do consistório, o Papa declarava sobre sua conferência: “Encontrei ali amor pela Igreja” e agregava: “De noite, antes de ir dormir, não para conciliar o sono, voltei a ler o trabalho do Cardeal Kasper; queria agradecer-lhe, pois encontrei ali uma teologia profunda, um pensamento sereno da teologia. É agradável ler uma teologia serena. Encontrei também o que Santo Inácio nos dizia, o sensus Ecclesiæ, o amor de nossa mãe,a  Igreja. Isso me fez bem, e me veio uma ideia à cabeça; desculpe-me, Eminência, se o ponho numa situação incômoda. A ideia é a seguinte: Isso é o que chamo fazer teologia de joelhos. Obrigado. Obrigado“[11].

 

Outras consequências

 

Junto a essa oposição que o Cardeal encontrou no Consistório, fizeram-se sentir, naturalmente, vozes de apoio à sua iniciativa. O Cardeal Marx, Arcebispo de Munique, estava entusiasmado depois da conferência de Kasper. Segundo o prelado, a conferência foi uma “Abertura” a uma discussão que está longe de terminar. O Cardeal Marx tinha criticado pública e asperamente o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Dom Müller, quando este recordou a doutrina católica, a saber, a indissolubilidade do matrimônio e, portanto, a impossibilidade de outorgar aos divorciados “recasados” o acesso à comunhão. O Cardeal Schönborn, arcebispo de Viena (Áustria), manifestou sua grata impressão. Na edição atual de seu boletim diocesano, ele diz sobre a conferência de Kasper que “o tema chega onde estão as dificuldades da família” e a julga “maravilhosamente expressada“e “extraordinária” [12].

 

A chaga aberta com o discurso do Cardeal Kasper vai continuar supurando e causando durante muito tempo graves prejuízos ao Corpo místico de Cristo, tanto mais que Kasper se acha protegido pelo Papa. Como exemplo desses afetos nefastos, basta ver a automática divisão na assembleia geral dos bispos alemães em Münster, especialmente por causa da eleição do novo presidente da Conferência Episcopal.

 

O início dessa discussão constitui, em efeito, um verdadeiro ataque, similar ao que se levantou contra a encíclica “Humanæ vitæ” de Paulo VI por meio da “Königsteiner Erklärung” dos bispos alemães, os quais pretendiam que os esposos poderiam seguir sua consciência individual em matéria de contracepção. As consequências desse ataque à moral conjugal já se podem ler num artigo pastoral editado em setembro de 2013 pela equipe pastoral do arcebispado de Friburgo de Brisgóvia. No artigo se afirma o seguinte: “A segunda comunidade conjugal deve, durante um tempo prolongado, ter dado mostras de uma vontade decidida e publicamente manifestada de viver juntos de maneira permanente segundo a ordem estabelecida do matrimônio, como realidade moral […]”.

 

Esses casais, “em razão dos valores humanos que realizam conjuntamente, e sobretudo por sua disponibilidade a se responsabilizarem um pelo outro de maneira pública e jurídica, merecem um reconhecimento moral. […] O casal deseja mutuamente essa aprovação, deseja que sua vida esteja acompanhada e protegida por Deus; esperam um acompanhamento que lhes dê ânimo e confiança para empreender seu novo projeto de vida. […] A bênção e a entrega de uma vela simbolizam esse desejo. […]”

 

Do anterior segue que haverá uma celebração litúrgica com bênção para esse tipo de “casais”: “Acende-se uma vela da chama do círio pascal; o casal segura a vela“. Propõe-se a seguinte oração: “Oremos: Deus eterno, em vós achamos perdão, amor e vida nova. Vós iluminais a vida. Nós vos pedimos que abençoeis esta vela. Assim como seu resplendor dá luz à noite, assim Vós iluminais o caminho de cada homem. Sede também luz para N. e N., a fim de que experimentem em todas as coisas o que significa o sustento de vossa presença. Ajudai-os, a fim de que se salvem e se fortaleçam em vossa luz. Nós vos pedimos isso pelo mesmo Cristo, Nosso Senhor. Amém.” Em função da situação e do lugar, pode-se acrescentar eventualmente: “oração para toda a (nova) família (Livro de Bênçãos pág. 239) – bênção da casa comum (Livro de Bênçãos pág. 270)“. Porventura não se trata de abençoar o concubinato e, portanto, abençoar o pecado?

 

A iniciativa do Cardeal prevê a comunhão sacramental só para uma pequena parte dos concubinários; mas quem há de designá-los? E aqueles que não forem admitidos não se sentirão deixados injustamente de lado? Sucederá o mesmo que com a “Königsteiner Erklärung“: uma vez feita a brecha no dique, a prática das comunhões sacrílegas por parte dos concubinários se propagará com um tsunami.

 

Embora o neomodernismo tenha causado prejuízos enormes antes e depois do Concílio na Fé e na Tradição, continuavam, entretanto, defendendo a moral, ao menos em alguns pontos. O Cardeal Kasper toma agora as armas contra tais pontos.

 

Doutrina da Igreja sobre o matrimônio

 

O matrimônio cristão tem por modelo a aliança entre Deus e seu povo; e, mais ainda, o vínculo do Esposo místico Jesus Cristo com sua esposa a Igreja. Uma vez consumado, o matrimônio é para sempre indissolúvel e elevado por Deus mesmo como sacramento verdadeiro.

 

Seu primeiro objetivo é a transmissão da vida e a educação cristã dos filhos confiados por Deus aos esposos, até a idade de perfeitos cristãos. Seu segundo objetivo é a ajuda mútua que se dão os esposos e sua santificação. É, além disso, um remédio contra a concupiscência da carne.

 

Em defesa da dignidade, da santidade e da indissolubilidade do matrimônio entendido como o vínculo entre um homem e uma mulher, acrescentamos também as palavras de Cristo: “Que o homem não separe o que Deus uniu” (Mat. 19,6) e “Aquele que repudia sua mulher e se casa com outra, comete adultério” (Luc. 16,18). Assim, pois, se um cristão casado, enquanto ainda está vivo o cônjuge, entabula uma nova relação, comete adultério, e este pecado o exclui da recepção dos sacramentos. “Não vos enganeis: os adúlteros não possuirão o reino dos céus” (1Cor. 6,9). Essa é doutrina revelada por Deus, mantida constantemente pela Igreja e proclamada pelo Concílio de Trento em sua 24ª Sessão de 11 de novembro de 1563. O cânon VII diz sobre o sacramento do matrimônio: “Se alguém disser que a Igreja erra quando ensinou e ensina que, conforme o ensino evangélico e apostólico [ver Mat. 5,32; 19,9; Mc. 10,11-12; Luc. 16,18; 1Cor. 7,11], o vínculo matrimonial não pode ser dissolvido pelo adultério de um dos esposos, e que nenhum dos dois, nem mesmo o inocente que não deu motivo ao adultério, pode, estando vivo o cônjuge, contrair novo matrimônio, de modo que comete adultério aquele que, repudiada a adúltera, casa com outra: seja anátema“.

 

Não faz muito tempo – em 14 de setembro de 1994 –, a Congregação para a Doutrina da Fé, em carta dedicada justamente à questão da comunhão para os divorciados “recasados”, havia rejeitado essa prática. Devido às fortes reações que a carta suscitou, o Cardeal Ratzinger insistiu uma vez mais sobre a doutrina da Igreja com relação à indissolubilidade do matrimônio e respondeu às objeções e reprovações. Essa segunda carta refutava antecipadamente e de maneira exaustiva os sofismas do Cardeal Kasper[13].

 

Quando Henrique VIII da Inglaterra quis, no século XVI, contrair núpcias adúlteras com a dama da corte Ana Bolena, a Santa Sé defendeu a santidade do matrimônio, suportando por isso que um país inteiro fosse arrebatado à unidade da Igreja. Em tempos evangélicos, vemos São João Batista avisar a Herodes: “Não te é permitido ter a mulher de teu irmão” (Mc. 6,18). Em testemunho disso, São João entrega sua vida e seu sangue. Só um amor semelhante à verdade e tal firmeza nos homens da Igreja, sobretudo nos bispos e nos representantes da Santa Sé, serão capazes de reconstruir a cristandade.

 

Zaitzkofen, 25 de março de 2014
Festa da Anunciação da Santíssima Virgem Maria

Padre Franz Schmidberger
Reitor do Seminário Herz Jesu, Antigo Superior Geral da Fraternidade São Pio X

 

[1]Citações tomadas e traduzidas da revista “Der Spiegel”, de maio de 2014.

[2]“Gott in der Geschichte”, artigo apresentado en “Gott heute”, 15 Beiträge zur Gottesfrage de Norbert Kutschki, Editora Matthias-Grünewald, Mainz, 1967.

[3]“Einführung in den Glauben”, Walter Kasper, 1974, Editora Matthias Grünewald, 7ª edição, 1983, capítulo 9.4, pág. 148.

[4]Jesus der Christus”, Walter Kasper, Editora Matthias Grünewald, 7ª edição, 1978, Segunda Parte: “Geschichte und Geschick Jesu Christi”, capítulo 3, págs. 105-106.

[5]Ibid., pág. 106.

[6]Ibid., pág. 106.

[7]Ibid., págs. 149-150.

[8]Ibid., pág. 129.

[9]Kasper, “Jesus und der Glaube”, in: Walter Kasper, Jürgen Moltmann: “Jesus ja – Kirche nein?” (theologische Meditationen 32), Zürich, Einsiedeln, Köln 1973, pág. 20.

[10]Kasper: “Einführung in den Glauben”, pág. 55.

[11]http://www.vatican.va/holy_father/francesco/speeches/2014/february/documents/papa-francesco_20140221_concistoro-ora-terza_it.html

[12]Giuseppe Nardi: “Katholisches.info” de 27 de fevereiro de 2014.

[13]Denzinger, Symboles et définitions de la foi catholique, Cerf, 38ª edição (versão francesa), 1997, page 477. Essa carta foi publicada novamente por Bento XVI no “L’Osservatore Romano” no fim de novembro de 2001.