1954

 

Alocuções

sobre o Tríplice Poder da Hierarquia Eclesiástica

Grande número de Cardeais, Arcebispos e Bispos reuniu-se em Roma por ocasião da canonização de S. Pio X e da proclamação da festa da realeza de Maria. Sua Santidade o Papa Pio XII aproveitou estas duas solenes oportunidades (31 de maio e 2 de novembro de 1954) para proferir graves advertências sobre a competência da Igreja no seu tríplice múnus de ensinar, santificar e governar os fiéis.

I

ALOCUÇÃO DE 31 DE MAIO DE 1954

 

Introdução

1. “Se amas… apascenta”. Qual a razão da atividade apostólica, a sua virtude fundamental, a origem e fonte dos seus méritos, claramente o ensina esta recomendação do Divino Salvador ao Apóstolo São Pedro, pela qual começa o intróito da Missa em honra de um ou vários Sumos Pontífices. Seguindo as pisadas de Jesus Cristo, Pontífice e Pastor eterno – que para nosso bem ensinou coisas sublimes, realizou maravilhas e suportou tantas dores, – o Romano Pontífice Pio X, com grande alegria incluído por Nós no catálogo dos Santos, amou, apascentando e apascentou amando, cumprindo assim incansavelmente o preceito de Cristo. Amou a Cristo e apascentou o rebanho de Cristo. Das riquezas sobrenaturais trazidas à terra pelo nosso Redentor, hauriu ele em abundância as que distribuiu com liberalidade ao seu rebanho, isto é: o alimento da verdade; os mistérios celestes; a magnificência da graça da divina Eucaristia, sacrifício e sacramento; a doçura da caridade; a assídua solicitude do governo; e a defesa intrépida da verdade. Todo se deu a si mesmo e deu juntamente tudo quanto lhe concedera o Criador e Doador de todos os bens.

2. Vós, veneráveis irmãos, coroa de Nossa alegria, viestes a Roma para tomar parte nas solenes cerimônias, e para, juntamente conosco, mostrar a vossa admiração e prestar a vossa homenagem a esse Bispo da Cidade de Roma, cuja vida ínclita ilustrou toda a Igreja; e também para dardes graças a Deus de ter espalhado por meio dele grande número de benefícios em favor dos que leva, com paternal misericórdia, à eterna salvação.

3. Irmãos caríssimos, vindos em tão grande número de todas as partes do mundo, é com intensa alegria e comoção que no meio de vós Nos encontramos, Nós, o Vigário de Cristo, como “ancião” entre “anciãos”. E queremos, primeiro que tudo, expor-vos brevemente o que desejamos recordar-vos, servindo-Nos das palavras da carta agora aludida do primeiro Papa e Príncipe dos Apóstolos: “Aos anciãos que estão entre vós, rogo eu, ancião como eles e testemunha dos sentimentos de Cristo…, apascentai o rebanho de Deus que vos está confiado, tende cuidado dele, não constrangidos mas de boa vontade, segundo Deus…, feitos sinceramente exemplares do rebanho” (cf. 1 Ped. 5, 1-3). Esta recomendação tem o mesmo sentido da palavra divina citada, que estimula e incita o zelo pastoral: “Se amas… apascenta”.

O MAGISTÉRIO

4. Mas queremos manifestar aquilo em que pensamos ao recordar essas palavras de São Pedro. A solicitude que temos de todas as Igrejas, e a vigilância a que Nos obriga todos os dias a altíssima responsabilidade do Nosso ministério, exigem que ponhamos diante dos Nossos olhos e consideremos bem alguns pensamentos, sentimentos e normas de vida prática, que vos queremos também recomendar, para que, em união de esforços, mais pronta e eficazmente se atenda ao rebanho de Cristo. Parecem descobrir-se sintomas e conseqüências de certa epidemia espiritual, que requer a intervenção dos Pastores, não, vá tornar-se mais aguda e difundir-se. Exige que se cure a tempo e se debele o mais depressa possível.

5. Parecia-Nos a propósito expor, de maneira particularizada, quanto isso vos compete a vós, sucessores dos Apóstolos, sob a autoridade do Romano Pontífice, em virtude do tríplice poder a vós confiado, por divina instituição (cf. cân. 329), isto é, do magistério, do sacerdócio e do governo. Mas não bastando hoje o tempo, limitar-Nos-emos só ao primeiro ponto no Nosso discurso, deixando para outra ocasião (se Deus o permitir) os outros dois.

O Papa e os Bispos têm a obrigação de vigiar sobre a doutrina professada por aqueles a quem delegaram o poder de ensinar

6. As verdades que trouxe do céu, confiou-as Nosso Senhor Jesus Cristo aos Apóstolos e por meio deles aos seus sucessores; como ele foi enviado pelo Pai (Jo. 20, 21), assim enviou os Apóstolos para ensinarem a todas as gentes tudo o que dele tinham ouvido (cf. Mt. 28, 19-20). Por direito divino, portanto, foram os Apóstolos constituídos verdadeiros doutores ou mestres na Igreja. Além dos legítimos sucessores dos Apóstolos – isto é, do Papa quanto à Igreja Universal, e dos Bispos quanto aos fiéis confiados aos cuidados de cada um (cf. cân. 1326) – não há na Igreja outros mestres por direito divino; mas tanto os Bispos como especialmente o Supremo Mestre da Igreja e Vigário de Cristo na terra, podem chamar outros colaboradores e conselheiros no magistério, para lhes delegarem o poder de ensinar (quer pessoalmente quer em virtude do ofício – cf. cân. 1328). Mas os chamados assim a ensinar não são mestres na Igreja em seu próprio nome, nem pelo título da ciência teológica, mas sim pela missão que receberam do legítimo Magistério; e a este fica sempre sujeito o poder comunicado, nem se torna nunca “sui iuris” ou independente. Os Bispos, por outro lado, ao darem tal poder, não se privam nunca do direito de ensinar, nem se desobrigam do dever gravíssimo de prover e vigiar quanto à integridade e segurança da doutrina proposta pelos seus colaboradores. Por isso, o legítimo magistério da Igreja não lesa ou ofende nenhum daqueles a quem deu a missão canônica, quando deseja informar-se bem do que eles ensinam e defendem, seja em lições orais, cursos ou folhas reservadas aos alunos, seja em livros e outros escritos, de domínio público. Para tal vigilância, não é intenção Nossa estender a todos estes meios de ensino as normas jurídicas a respeito da censura prévia dos livros, porque há muitos outros meios para se chegar com segurança a conhecer a doutrina assim proposta. Nem as precauções e a circunspeção do legítimo Magistério significam desconfiança ou suspeita – (como também não significa a profissão de fé que a Igreja exige aos que ensinam e a muitos outros; cf. cân. 1406, n. 7 e 8); pelo contrário, conceder a faculdade de ensinar mostra confiança e estima, e é honra para quem a recebe. A própria Santa Sé, quando inquire e quer saber em matéria da sua competência o que se ensina em alguns Seminários, Colégios, Ateneus e Universidades, fá-lo por causa não só do mandato de Cristo, mas também da obrigação que tem perante Deus de defender a são doutrina e de a conservar íntegra e incorrupta. Além disso, esse exercício da vigilância tende também a defender e a estimular o vosso direito e dever de pastorear o rebanho a vós confiado, distribuindo-lhe a genuína verdade de Cristo.

7. Não é sem motivo grave que diante de vós, Veneráveis Irmãos, pronunciamos estas advertências. Porque, dá-se infelizmente o caso de, alguns que ensinam, pouco se importarem da união com o Magistério vivo da Igreja, e pouco aplicarem o pensamento e afeto à doutrina comum dela, que é proposta claramente de vários modos; e atribuem ao mesmo tempo papel exagerado à própria inteligência, à mentalidade moderna e aos princípios das outras ciências, que têm como as únicas dotadas verdadeiramente de método científico. Sem dúvida, a Igreja ama e promove sumamente o estudo e progresso da ciência humana e rodeia de particular afeto e estima as pessoas doutas que dedicam a vida ao estudo.

8. Mas as coisas que dizem respeito à religião e aos costumes, às verdades que transcendem completamente a ordem sensível, dependem exclusivamente da autoridade doutrinal da Igreja. Na Nossa Encíclica “Humani Generis” descrevemos a mentalidade e o espírito desses a quem aludimos há pouco; e notamos também que algumas aberrações nela condenadas vêm unicamente de se ter descurado a união com o Magistério vivo da Igreja.

9. Esta necessária união com o pensamento e doutrina da Igreja, várias vezes a ponderou São Pio X em documentos de grande importância, bem conhecidos de todos vós. O mesmo repetiu Bento XV, que, depois de ter renovado solenemente na sua primeira Encíclica (Ad Beatissimi Apostolorum Principis, de 1º de novembro de 1914) a condenação do modernismo pronunciada pelo seu predecessor, assim caracterizava os sequazes deste sistema: “Quem segue tal mentalidade, rejeita com desdém tudo o que sabe a antigo, e procura com avidez tudo o que sabe a novidade: na maneira de falar das coisas divinas, na celebração do culto divino, nas instituições católicas, e até no exercício da devoção particular” (AAS VI [1914], p. 578). E, se alguns professores contemporâneos insistem em propor e desenvolver coisas novas, e não em repetir “o que foi transmitido”; se apenas coisas novas querem propor, considerem atentamente o que Bento XV na citada Encíclica lhes diz: “Queremos que se respeite religiosamente esta máxima dos antigos: Nada se inove, e conserve-se o que foi transmitido; e, ainda que esta máxima é em matéria de fé que se deve manter de todo inviolada, todavia também por ela se hão de regular as coisas suscetíveis de alteração; nestas matérias vale também de ordinário a conhecida regra: Não coisas novas, mas em forma nova” (1. c.).

Não existe na Igreja magistério de leigos subtraído ao magistério sagrado

10. Os leigos é claro que também podem ser chamados ou admitidos pelos legítimos Mestres como colaboradores na defesa da fé. Basta lembrar o ensino da doutrina cristã, exercido por tantos milhares de homens e mulheres, e também as outras formas desse apostolado. Tudo isto é digno do maior louvor, pode e deve promover-se com todas as forças. Mas é preciso que todos esses leigos se mantenham sujeitos à autoridade, à direção e vigilância dos que foram constituídos, por divina instituição, mestres na Igreja de Cristo. Porque na Igreja não há nenhum magistério, em coisas respeitantes à salvação das almas, que não esteja sujeito a este poder e vigilância.

11. Mas surgiu recentemente em alguns lugares e começou a propagar-se muito a chamada teologia laica; introduziu-se também a categoria especial dos teólogos laicos, que se dizem independentes; há lições, publicações, círculos, cátedras e professores desta teologia. Constituem estas um magistério à parte, e opõem-no em certo modo ao Magistério público da Igreja; por vezes, para justificarem o proceder, apelam para os carismas de ensinar e interpretar, de que se fala várias vezes no Novo Testamento, sobretudo nas epístolas de São Paulo (por ex. Rom. 12, 6-7; 1 Cor. 12, 28-30); e apelam também para a história, que, desde o princípio do Cristianismo até ao nosso tempo, apresenta tantos nomes de leigos, que ensinaram a verdade de Cristo para bem das almas com escritos e de viva voz, mas sem chamamento dos Bispos nem licença do Magistério sagrado, levados apenas por moção interna e pelo zelo apostólico. Contra tais idéias, deve professar-se o seguinte: Nunca houve nem há nem haverá na Igreja qualquer magistério legítimo dos leigos, que não tenha sido submetido por Deus à autoridade, direção e vigilância do Magistério sagrado; mais, só o negar tal sujeição é argumento decisivo e sinal seguro de que os leigos, que assim falam e procedem, não são movidos pelo Espírito de Deus e de Cristo. Além disso, não se pode deixar de reconhecer o grande perigo de perturbação e de erro que existe nesta “teologia laica’; e perigo também de começarem a ensinar pessoas completamente ineptas, e até enganadoras e disfarçadas que São Paulo assim descreve: “Virá tempo em que… multiplicarão para si mestres conforme os seus desejos, pelo prurido de ouvir. E afastarão os ouvidos da verdade, e os aplicarão às fábulas” (cf. 2 Tim. 4, 3-4).

12. Com esta advertência, estamos longe de afastar, do estudo mais profundo da doutrina sagrada e da sua divulgação, aqueles que estão animados de tão nobre empenho, seja qual for sua posição e seu ambiente.

13. Como o pedem igualmente o cargo e a honra do vosso dever, esforçai-vos cada vez mais, Veneráveis Irmãos, por penetrar sempre melhor a sublime profundeza da verdade sobrenatural, e por propor com assídua e inflamada eloqüência as sagradas verdades da Religião àqueles que estão expostos ao gravíssimo perigo de se deixarem fascinar por tenebrosos erros no pensamento e no coração. E, por vosso meio, voltem eles a Deus fazendo penitência e amando a quem devem, porque “apartar-se dele é cair; virar-se para ele é ressurgir; permanecer nele é estar firme…; voltar a ele é renascer; habitar nele é viver” (Santo Agostinho, Solilóquios, 1. 1, 3; Migne PL, tom. 32, col. 870).

Para isto conseguirdes eficazmente, invocamos sobre vós os divinos auxílios; e, para que estes vos sejam concedidos em abundância, de todo o coração vos damos, a vós e aos vossos rebanhos, a Bênção Apostólica.

II

ALOCUÇÃO DE 2 DE NOVEMBRO DE 1954

Introdução

1. “Glorificai ao Senhor comigo; e exaltemos juntos o seu nome” (Sl. 33, 4), porque, Diletos Filhos Nossos e Veneráveis Irmãos, ao realizarem-se com o favor divino os Nossos votos, temos a felicidade de gozar da vossa agradabilíssima presença e de vos ver tão numerosos diante de Nós. Aumenta ainda a Nossa alegria espiritual a instituição solene da nova festa litúrgica de Nossa Senhora Rainha do Céu e da Terra, porque é próprio de filhos rejubilar ao verem acrescida a honra da mãe.

Maria Rainha dos Apóstolos

2. Se a Bem-Aventurada Virgem Maria é Rainha de todos, reina em vós e nas vossas empresas de modo particular e com especial razão, porque se lhe costuma atribuir o singular e augusto título de Rainha dos Apóstolos. É a mãe do amor formoso e do temor e do conhecimento e da santa esperança (cf. Ecli. 24, 24); e, como tal, o seu maior desejo e afã é que se enraíze mais profundamente nas almas o genuíno culto divino, que arda mais viva a caridade, seja orientada pelo temor de Deus a maneira de proceder, e venha consolar o triste exílio da terra a esperança das promessas imortais? Mas é ao trabalho e diligência com que exerceis o vosso múnus apostólico que ficam devendo os homens, depois duma vida sóbria, justa e pia, que terá fim, conseguir no céu a felicidade eterna. Sob a direção portanto e com a ajuda de Maria sempre Virgem, Mãe e Senhora nossa, resolvemos tratar diante de vós de alguns pontos que julgamos firmemente hão de ser úteis a vós e ao vosso solícito trabalho, no cultivo do campo do Senhor.

3. No princípio do mês de junho deste ano, juntaram-se muito numerosos em Roma os Bispos vindos de toda a parte, para reverenciarem e venerarem o Pontífice Máximo Pio X, a quem então decretamos as honras da Canonização. Falamos-lhes nessa altura do magistério que, por divina instituição e prerrogativa, pertence aos sucessores dos Apóstolos sob a autoridade do Romano Pontífice. Agora, aproveitando a oportunidade de continuar por assim dizer o discurso então começado, apraz-Nos tratar dos outros dois poderes, muito unidos ao primeiro, que vos pertencem e requerem os vossos pensamentos e cuidados. Vamos ocupar-Nos do sacerdócio e do governo.

O SACERDÓCIO

4. Volvamos de novo o espírito e o coração para São Pio X, Sumo Pontífice.

5. Pela sua vida sabemos o que foram para ele o altar e o sacrifício Eucarístico, desde que ofereceu a Deus as primícias do sacerdócio, ao dizer pela primeira vez “Introibo ad altare Dei” junto dos degraus do altar, e depois, durante toda a sua vida sacerdotal: como Pároco, Diretor Espiritual no Seminário, Bispo, Patriarca e Cardeal, e por último como Sumo Pontífice. O altar e o sacrifício Eucarístico foram para ele a origem e, por assim dizer, o centro da sua piedade, o refúgio e a força de ânimo nas aflições e angústias, a fonte de luz, fortaleza e zelo assíduo da glória de Deus e salvação das almas. Este Pontífice como o foi e é modelo de Mestre, assim foi e é modelo de Sacerdote.

Não há verdadeiro Sacerdócio onde não há poder de sacrificar

6. A obrigação própria e principal do sacerdote sempre foi e é ainda “sacrificar”, de modo que, onde não há próprio e verdadeiro poder de sacrificar, também não há próprio e verdadeiro sacerdócio.

7. Isto mesmo se verifica perfeitamente no sacerdote da Nova Lei, cujo principal poder e função própria é oferecer o único e altíssimo sacrifício do Sumo e Eterno Sacerdote Jesus Cristo, aquele que o divino Redentor ofereceu de modo cruento na cruz, antecipou incruentamente na Última Ceia e quis que fosse renovado constantemente, mandando aos seus Apóstolos: “Fazei isto em memória de mim” (Lc. 12, 19). Portanto, o próprio Cristo fez e constituiu sacerdotes os Apóstolos e não todos os fiéis, e deu-lhes o poder de sacrificar. Sobre este excelso cargo e ação de sacrificar do Novo Testamento ensinou o Concílio Tridentino: “Neste divino sacrifício, que se realiza na Missa, está contido e imola-se incruentamente aquele mesmo Cristo, que no altar da cruz uma vez se ofereceu a si mesmo cruentamente… É uma e a mesma hóstia, oferecendo-a agora pelo ministério dos sacerdotes aquele mesmo que se ofereceu então na cruz, sendo diverso apenas o modo de oferecer” (Sessão XXII, cap. 2, Dz n. 940). É pois o sacerdote celebrante e só ele quem sacrifica, fazendo as vezes de Cristo; não é o povo, não são os clérigos, nem sequer os sacerdotes que piedosamente ministram ao que celebra; ainda que todos estes possam e devam tomar alguma parte ativa no sacrifício. “Os fiéis, por participarem do sacrifício Eucarístico, não possuem também o poder sacerdotal”, como dissemos na Nossa Carta Encíclica Mediator Dei sobre a sagrada Liturgia (D. P. 54).

Só o sacerdote sacrifica ao altar. Nova condenação da “concelebração”

8. Tudo o que dissemos, Veneráveis Irmãos, sabemos que é de vós bem conhecido. Todavia, julgamos oportuno recordá-lo, por ser como que o fundamento e a razão de quanto vamos acrescentar já a seguir. Na verdade não falta quem continue a reivindicar para todos aqueles que assistem piedosamente ao santo sacrifício da Missa, mesmo leigos, um certo e verdadeiro poder de sacrificar. Contra tal pretensão, importa que discernamos a verdade do erro, removendo toda a ambigüidade. Há sete anos, na mesma Carta Encíclica, reprovamos o erro daqueles que não duvidaram declarar que o mandato de Cristo “fazei isto em memória de mim” dizia respeito diretamente a toda a Igreja dos fiéis, e só depois surgira o sacerdócio hierárquico. Segundo isso, o povo está dotado de verdadeiro poder sacerdotal e o sacerdote desempenha um ofício que só lhe foi confiado pela comunidade. Por este motivo julgam que o sacrifício Eucarístico é uma verdadeira “concelebração”, e opinam ser mais conveniente que os vários sacerdotes presentes “concelebrem” em união com o povo, em vez de celebrarem privadamente o santo Sacrifício sem assistentes. Na mesma ocasião lembramos a razão por que se pode dizer que o sacerdote “faz as vezes do povo”; essa razão está em que “ele representa a pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é a Cabeça de todos os membros e se oferece a si mesmo por eles. Por isso (o sacerdote) aproxima-se do altar como ministro de Cristo, inferior a Cristo, mas superior ao povo. O povo, pelo contrário, visto de nenhum modo representar a pessoa do divino Redentor, nem desempenhar a função de conciliador entre si e Deus, de modo algum está dotado do poder sacerdotal”.

9. No estudo deste problema, não se trata apenas de medir o fruto que se pode receber da celebração ou assistência ao sacrifício Eucarístico. Pode, na verdade, suceder que se recebam maiores frutos duma Missa ouvida com religiosa piedade, do que duma celebração leviana e negligente. Trata-se de determinar a natureza do ato de ouvir e celebrar a santa Missa, do qual derivam os outros frutos do sacrifício: frutos – para não falar do culto divino de adoração e ação de graças – de propiciação e impetração por quem se oferece o sacrifício, ainda que não esteja presente; bem como frutos aplicados “pelos pecados, penas, satisfações e outras necessidades dos vivos, e igualmente por aqueles que morreram em Cristo, ainda não plenamente purificados” (Conc. Trid. Sess. XXII, cap. 2 – Denzinger n. 940). Posto assim o problema, deve rejeitar-se como opinião errônea a afirmação que, nos nossos tempos, não apenas leigos, mas até alguns Teólogos e sacerdotes fazem e propagam, pretendendo que a celebração de uma Missa, a que assistem cem sacerdotes com toda a piedade, é a mesma coisa que cem Missas celebradas por cem sacerdotes. De forma nenhuma. Quanto à oblação do sacrifício Eucarístico, são tantas as ações de Cristo Sumo Sacerdote, quantos os sacerdotes que celebram, e de modo nenhum quantos são os sacerdotes que ouvem piedosamente a Missa celebrada por um Bispo ou por outro sacerdote. Estes, na verdade, assistindo ao sacrifício de forma alguma fazem as vezes da pessoa de Cristo sacrificante, mas devem equiparar-se aos simples fiéis que estão presentes ao sacrifício.

O que se deve entender por “sacerdócio dos Fiéis”

10. Por outro lado, não deve negar-se nem pôr-se em dúvida que os fiéis têm certo “sacerdócio”, e não é lícito fazer dele menos conta ou depreciá-lo. Com efeito, o Príncipe dos Apóstolos, na sua primeira Carta, falando aos fiéis, emprega estas palavras: “Vós sois uma geração escolhida, um sacerdócio real, uma gente santa, um povo de conquista” (1 Ped. 2, 9). E pouco antes, tinha afirmado que era próprio dos fiéis “o sacerdócio santo, oferecer sacrifícios espirituais, aceitáveis a Deus por Jesus Cristo” (1. c. 2, 5). Qualquer, porém, que seja a verdadeira e plena significação deste honroso título e da realidade que indica, deve asseverar-se firmemente que este “sacerdócio” comum de todos os fiéis, alto e misterioso, difere, não só em grau mas essencialmente, do sacerdócio verdadeiro e propriamente dito, que está no poder de realizar, representando a pessoa de Cristo Sumo Sacerdote, o próprio sacrifício de Cristo.

Os Congressos Litúrgicos – Diretivas

11. Com prazer soubemos que em muitas dioceses surgiram centros especiais de liturgia, foram constituídas associações litúrgicas, se nomearam promotores de assuntos litúrgicos, houve reuniões litúrgicas diocesanas e interdiocesanas e se realizaram ou estão em preparação Congressos internacionais. Com muita satisfação soubemos que em algumas partes os próprios Bispos assistiram ou presidiram a tais Assembléias. Estas reuniões seguem por vezes um estilo próprio, sendo um só a celebrar a santa Missa e assistindo os outros (todos ou a maior parte), a esse único sacrifício e recebendo nele a sagrada Comunhão da mão do celebrante. Se isto se faz por motivo justo e razoável, e o Bispo não determina outra coisa para evitar a estranheza dos fiéis, não há por que impedi-lo contanto que, por detrás desta maneira de perceber, não esteja o erro a que acima aludimos. Pelo que respeita aos assuntos tratados nessas Assembléias, ventilaram-se questões referentes à história, à doutrina, e à prática; tiraram-se conclusões e formularam-se votos que pareceram convenientes ou necessários a esse mais vasto progresso, com intenção de os sujeitar ao juízo da legítima autoridade eclesiástica. Este movimento de vida litúrgica não se limitou à celebração de reuniões; ao mesmo tempo, fomentou-se muito o hábito de os fiéis se unirem mais vezes e em maior número ao sacerdote celebrante e comungarem com ele.

12. Mas, Veneráveis Irmãos, embora favoreçais – e com justo direito – a prática e desenvolvimento da sagrada Liturgia, não permitais, àqueles que por ela se interessam nas vossas dioceses, subtraírem-se à vossa orientação e vigilância, pretendendo eles determinar e mudar a sagrada liturgia a seu arbítrio, contra as normas que a Igreja estabeleceu em termos claros: “Pertence exclusivamente à Sé Apostólica ordenar a sagrada liturgia e aprovar os livros litúrgicos” (cân. 1257), e de modo especial quanto à celebração da Missa: “Reprovado qualquer costume contrário, o sacerdote celebrante observe cuidadosa e devotamente as rubricas dos seus livros rituais, e não se permita acrescentar outras cerimônias ou orações a seu arbítrio” (cân. 818). Pela vossa parte não deis a vossa aprovação a tais iniciativas e tendências, mais audaciosas que prudentes.

O GOVERNO

13. “Fazendo-vos modelo do rebanho” (týpoi ginómenoi tou poimniou) (1 Ped. 5, 3): estas palavras de São Pedro referem-se principalmente aos Bispos, que têm e exercem o cargo de Pastores. Caráter peculiar e distintivo do Pontificado de Pio X é de fato a atitude de “Pastor”. Quando ele subiu à cátedra do Príncipe dos Apóstolos, depressa todos compreenderam que tinha sido elevado ao Sumo Pontificado um sacerdote, que se formara na cura das almas, que desde o princípio do seu sacerdócio até ser posto à frente de todo o rebanho de Cristo, fora e se mostrara sempre pastor de almas. A norma imutável das suas ações, o lema de vida que tomou, foi a salvação das almas. Se desejou “tudo restaurar em Cristo”, foi por causa da salvação das almas; e a este fim e obrigação subordinou de certo modo todas as suas ações. No meio do rebanho foi o bom pastor, cuidando-lhe das necessidades e preocupando-se dos perigos que o ameaçavam; todo empenhado em guiar e dirigir o rebanho de Cristo pelo caminho de Cristo.

14. Mas ao falar-vos, Veneráveis Irmãos, que sois pastores dos vossos rebanhos, não temos intenção de evocar de novo a exímia e perfeita imagem desse Santo Pontífice e Pastor; mas, como já fizemos quanto ao magistério e ao sacerdócio dos Bispos, preferimos relembrar agora algumas coisas que especialmente nestes nossos tempos requerem que o Pastor dirija, fale e intervenha.

O poder da Igreja não é limitado às coisas estritamente religiosas

15. Primeiro que tudo, notam-se agora hábitos e propensões de espírito, que se atrevem a coibir e circunscrever o poder dos Bispos – sem exceção do próprio Papa – enquanto eles são pastores dos próprios rebanhos. Restringem-lhes a autoridade, a intervenção e a vigilância só ás coisas estritamente religiosas, à pregação das verdades da fé, à direção dos atos de piedade, à administração dos sacramentos e às funções litúrgicas. Mas querem afastar a Igreja de todas as iniciativas e assuntos, referentes à verdadeira vida tal como se vive, à realidade da vida, como se diz, pretendendo que tais coisas estão fora das suas atribuições. Este modo de pensar manifestam-no às vezes em público alguns leigos católicos, até altamente responsáveis, ao dizerem: “Os Bispos e os sacerdotes, vemo-los com prazer, ouvimo-los e vamos ter com eles nas igrejas, que é lá que eles têm autoridade; mas nas praças e nos edifícios públicos, em que se tratam e resolvem coisas da terra e desta vida, não queremos vê-los nem ouvir-lhes a palavra. Nisto somos nós, leigos, os legítimos juízes, e de modo nenhum os sacerdotes de qualquer dignidade ou grau”.

16. Mas a tais erros devem-se opor com clareza e decisão as seguintes verdades: o poder da Igreja está longe de se limitar às chamadas “coisas estritamente religiosas”, mas estende-se ainda a toda a lei natural, na medida em que o seu ensino, interpretação e aplicação revestem caráter moral. Porque a observância da lei natural refere-se, por divina ordenação, ao caminho pelo qual o homem deve atingir o fim sobrenatural. Ora, a Igreja nesta vida é a condutora e guarda dos homens no que respeita a esse fim. Já deste modo procederam os Apóstolos, e depois deles a Igreja seguiu sempre, desde os primeiros tempos, o mesmo procedimento, que ainda hoje conserva; o que não faz como guia e conselheiro privado mas por ordem e autoridade divina. Por isso, quando se trata de prescrições e juízos, que tanto o Romano Pontífice, para toda a Igreja, como os Bispos, na parte confiada a cada um, pronunciam em matéria de lei natural, os fiéis não devem apelar para o prolóquio, que se costuma aplicar a pareceres de particulares: “Tanto vale a autoridade, quanto as razões”. Portanto, permanece a obrigação de obedecer, ainda quando alguém não vê como os argumentos aduzidos justificam a determinação da Igreja. Esta foi a mente, estas são as palavras de São Pio X na Epístola Encíclica “Singulari quadam” do dia 24 de setembro de 1912 (Acta Ap. Sedis, 1912, p. 568): “Faça o que fizer o cristão, mesmo na ordem das coisas terrenas, não lhe é lícito desprezar os bens sobrenaturais, pelo contrário tudo deve dirigir para o bem, como fim último, segundo as prescrições da sabedoria cristã: todas as suas ações, enquanto moralmente boas ou más, isto é, enquanto se conformam ou não com a lei natural e divina, estão sujeitas ao juízo e jurisdição da Igreja”. E logo a seguir aplica esta lei geral às coisas sociais: “A causa social com as controvérsias a ela subjacentes… não é de natureza meramente econômica, e por isso não se pode resolver desprezando a autoridade da Igreja, antes pelo contrário, é muito verdade que ela (a questão social) é principalmente moral e religiosa, e por isso há de resolver sobretudo segundo a lei moral e o veredicto da religião” (1. c., p. 658-59).

17. E em matéria social há, não uma só, mas muitas e gravíssimas questões, ou meramente sociais ou político-sociais, que dizem respeito à ordem moral, à consciência e salvação das almas, e por isso de maneira nenhuma se pode dizer que estejam fora da autoridade e vigilância da Igreja. Mais ainda, mesmo fora da ordem social, ocorrem questões, não estritamente religiosas acerca de matérias políticas, nacionais ou internacionais, que atingem a ordem ética, oneram a consciência, podem expor e muitas vezes expõem a graves perigos a consecução do fim último. Tais são as questões: do fim e limites do poder civil; das relações entre os indivíduos e a sociedade; dos chamados Estados totalitários e do princípio que lhes dá origem; da apregoada laicização total do Estado e da vida pública; da realização completa da laicização das escolas; da natureza ética, legitimidade ou ilegitimidade da guerra, tal como se faz nos nossos tempos, e da cooperação ou não cooperação do homem de consciência religiosa; dos vínculos e razões éticas que regem e obrigam as nações entre si.

18. Contradiz a verdade e a reta razão quem afirma que os pontos aduzidos e outros muitos do mesmo gênero se encontram fora da ordem e portanto estão, ou pelo menos podem estar, fora da alçada da Autoridade estabelecida por Deus para garantir a justa ordem, conduzir e dirigir pelo reto caminho as consciências e os atos dos homens em relação ao fim último, não só “no segredo”, entre as paredes do Templo e do santuário, mas também, e muito mais ainda, em público, anunciando “sobre os tetos” (para usarmos das palavras do Senhor; cf. Mt. 10, 27), no próprio campo de batalha, no meio da luta que ruge entre a verdade e o erro, entre a virtude e o vício, entre o mundo e o reino de Deus, e entre o príncipe deste mundo e Cristo Salvador.

A disciplina eclesiástica

19. Falta acrescentarmos ainda algumas palavras sobre a disciplina eclesiástica. Capacitem-se os clérigos e os leigos que a Igreja e, dentro dos limites comuns do direito, os Ordinários do lugar cada um para os seus fiéis, são os instrumentos aptos e legítimos para estabelecer e urgir a disciplina eclesiástica, quer dizer, para determinar o modo de proceder na ordem externa, que não tem origem nem na natureza das coisas nem na imediata instituição divina. Não é permitido aos sacerdotes ou aos leigos subtrair-se a esta disciplina, mas, guardando-a fielmente, todos devem procurar que a ação do Pastor se torne mais fácil e eficaz, se robusteça a união entre o rebanho e o pastor, e, dentro de cada rebanho, sejam pacificadas as relações, e haja colaboração, mútuo exemplo e ajuda.

A tendência atual à moral individual

20. Falamos até aqui dos direitos dos Bispos, como Pastores do rebanho que lhes foi confiado, em todas as coisas que dizem respeito à religião, aos costumes e à disciplina eclesiástica. Todas elas são alvo de certa crítica, muitas vezes velada e surda, e por isso mesmo não obtém o firme assentimento dos espíritos. Contribui também para isso haver no nosso tempo certos espíritos orgulhosos, que são causa da maior divisão. O indício dessas mentalidades manifesta-se numas partes mais, noutras menos. A consciência de ter atingido a maioridade, para que se apela cada vez mais, leva essas pessoas a agitar-se numa exaltação de espírito cada vez maior. Não poucos dos nossos dias, quer homens quer mulheres, julgam a direção e vigilância da Igreja indigna da maneira de proceder, que convém á idade adulta. Não só o repetem, mas estão disso intimamente convencidos. Com efeito, não querem estar sob “tutores e curadores” (Gál. 4, 2), à maneira de menores; querem ser julgados e tratados como adultos, livres e com direito de determinar o que devem fazer ou omitir em cada circunstância. Proponha a Igreja – não duvidam falar assim – os seus dogmas, promulgue leis, que regulem a nossa atividade. No entanto, quando estas se referem ou têm de se aplicar à vida individual, então deve a Igreja calar-se, e não se imiscuir de modo algum; deixe a cada fiel seguir o seu critério e consciência. Pretendem que isto é tanto mais necessário, quanto a Igreja e os seus ministros frequentemente ignoram certo e determinado estado de coisas. Ignoram as circunstâncias gerais, quer íntimas quer externas, em que cada um se encontra, e em que deve deliberar e tomar decisões. Além disso, nenhum destes quer intermediário, intérprete ou intercessor, de qualquer dignidade ou natureza que seja. Há dois anos, nas Alocuções de 23 de março e 18 de abril de 1952, falamos destas opiniões repreensíveis, e examinamos os seus argumentos (Discorsi e Radiomessaggi, vol. 14, 1952, p. 19 e ss; p. 69 ss). A respeito do alcance e importância próprios da “maioridade pessoal”, afirma-se com razão: É justo e razoável que os adultos não sejam governados como crianças. O Apóstolo afirma de si mesmo: “Quando eu era criança, falava como criança, apreciava as coisas como criança, discorria como criança. Mas quando me tornei homem, dei de mão às coisas, que eram de criança” (1 Cor. 13, 11). Não há verdadeira arte de educar, que siga outra norma e caminho, nem o verdadeiro pastor das almas pode querer outra coisa, que não seja fazer chegar os fiéis, que lhe estão confiados, “ao homem perfeito, à medida da plenitude da idade de Cristo” (Ef. 4, 13). Mas ser adulto e ter abandonado o que é próprio de criança é coisa absolutamente diferente de ser adulto e por isso não estar sujeito à direção e governo da legítima autoridade; o governo, de fato, não é uma espécie de tutor de crianças, mas a direção eficaz dos adultos, para finalidade comum.

21. Mas neste momento falamos a vós, Veneráveis Irmãos, e não aos fiéis. Se no vosso rebanho começarem a aparecer germes e indícios destes, fazei as seguintes advertências aos fiéis: 1) Deus constituiu na Igreja os Pastores das almas, não para impor fardos ao rebanho, mas para o guiar e defender; 2) a direção e vigilância dos pastores salvaguarda a verdadeira liberdade dos fiéis, afasta-os da escravidão dos erros e dos vícios, defende-os contra as seduções dos maus exemplos e convivência das pessoas depravadas, entre as quais têm de viver; 3) e assim procederiam contra a prudência e a caridade devida a si mesmo, se recusassem, por assim dizer, essa mão, que Deus para eles estende, e o auxílio eficaz que lhes oferece. Se encontrardes alguns clérigos e sacerdotes imbuídos desta falsa tendência e modo de ser, oponde-lhes as gravíssimas admoestações do Nosso Predecessor Bento XV, falando a este propósito: “Queremos chamar a atenção de todos e cada um dos sacerdotes, como filhos que profundamente amamos, sobre a urgente necessidade – tanto para a própria salvação, como para o fruto do seu ministério pastoral – de viverem na mais estreita união e obediência aos respectivos Prelados. Efetivamente, como há pouco lamentamos, nem todos os ministros sagrados estão imunes daquele orgulho e contumácia, próprios do tempo atual, não sendo raro que os Pastores sejam amargurados e combatidos por aqueles de quem deviam esperar conforto e auxílio” (Carta Encíclica “Ad Beatissimi Apostolorum Principis”, 1° de novembro de 1914; Acta Ap. Sedis, 1914, p. 579).

O Bom Pastor

22. Até aqui referimo-Nos a assuntos de cura pastoral; dissemos alguma coisa sobre as pessoas a cujo bem se destina a ação do pastor. Não devemos terminar antes de dirigir um pouco o Nosso pensamento aos mesmos Pastores. Aplicam-se aos Pastores, e portanto a Nós e a vós, aquelas palavras divinas: “Eu sou o bom pastor. Eu vim, para que tenham vida e a tenham abundantemente” (cf. Jo. 10, 10-11). A Pedro disse Nosso Senhor: “Se Me amas, apascenta os meus cordeiros, apascenta as minhas ovelhas” (cf. Jo. 21, 15, 17). A estes bons pastores opõe o mercenário, que se busca a si mesmo e aos seus interesses, e não está disposto a dar a sua vida pelo rebanho (cf. Jo. 10, 12-13); opõe os Escribas e Fariseus, ambiciosos de dominar, e ciosos da própria glória, que ocupavam a cátedra de Moisés, e impunham fardos pesados e impossíveis de levar, pondo-os aos ombros dos homens (cf. Mt. 23, 1, 4). Acerca do seu jugo, disse o Senhor: “Tomai sobre vós o meu jugo! O Meu jugo é suave e o Meu fardo é leve” (cf. Mt. 11, 29-30).

A utilidade das relações freqüentes entre os Bispos

23. Para tornar frutuoso e eficaz o dever pastoral, muito contribui a freqüente e mútua comunicação entre os Bispos. Assim se ajudam uns aos outros com a própria experiência; torna-se mais harmônico o governo, evita-se a estranheza dos fiéis, que muitas vezes não entendem porque numa diocese as coisas são de um modo, e de modo diferente, se não por vezes contrário, em outra talvez próxima. Para este fim, são de grande importância as Assembléias comuns, que já estão em uso em quase toda parte, e com maior solenidade os Concílios provinciais e plenários, ordenados pelo Código de direito canônico, que sobre eles dá leis particulares.

União e relações estreitas com a Santa Sé

24. A esta união e comunicação entre os Irmãos no Episcopado, deve juntar-se viva e freqüente união e comunicação com a Santa Sé. Desde os mais antigos tempos da Cristandade, vigora este costume de recorrer à Sé Apostólica, não só em assuntos de fé, mas também de governo e disciplina. Disto oferece não poucas matérias e exemplos a história antiga. Por sua vez, os Romanos Pontífices, interrogados, não responderam como teólogos privados, mas em virtude da sua autoridade, conscientes do poder recebido de Jesus Cristo para governar todo o rebanho e qualquer das suas partes. O mesmo se deduz dos casos em que os Romanos Pontífices, sem serem interrogados, dirimiram controvérsias ou chamaram a si a resolução de dúvidas. Por conseguinte, esta união e conveniente comunicação de problemas à Santa Sé não deriva de certo prurido de tudo concentrar e uniformizar, mas do direito divino e dum elemento próprio da mesma Constituição da Igreja de Cristo. Nem isto redunda em detrimento mas em vantagem dos Bispos, a quem foi confiado o governo de determinados rebanhos. Com efeito, da comunicação com a Sé Apostólica seguem-se: nas dúvidas, luz e segurança; nas dificuldades, conselho e vigor; nos empreendimentos, auxílio; nas provações, alívio e conforto. Por outro lado, dos relatórios enviados pelos Bispos à Sé Apostólica, obterá esta mais vasto conhecimento do estado do rebanho universal, saberá melhor e mais depressa quais os perigos iminentes e quais os remédios convenientes para os afastar.

Conclusão

25. Veneráveis Irmãos, Cristo na véspera da Paixão pediu ao Pai pelos Apóstolos, e juntamente por todos os sucessores deles no múnus apostólico: “Pai santo, guarda em teu nome aqueles que me deste, para que sejam um, assim como nós. Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo. O amor com que me amaste esteja neles e eu neles” (Jo. 17, 11. 18. 26).

E assim Nós, sacerdote, Vigário na terra do Eterno Pastor, estivemos a dirigir-vos a palavra, junto ao sepulcro do Príncipe dos Apóstolos e do Santo Pontífice Pio X, a vós, Nossos Irmãos, sacerdotes também (1 Ped. 5, 1). No fim desta alocução, recordamos de novo a Missa: “Si diligis”, pela qual começamos, e em cujo prefácio pedimos: “que não abandoneis o Vosso rebanho, Vós que sois o Pastor Eterno, mas por intercessão dos Vosso bem-aventurados Apóstolos, o conserveis sempre sob a Vossa proteção. A fim de que seja governado pelos mesmos chefes que pusestes à sua frente, como pastores e vigários da Vossa obra”; e no segundo pós-comúnio acrescentamos: “Aumentai na Vossa Igreja, nós vos pedimos, Senhor, o espírito de graça que lhe concedestes, de sorte que por intercessão do bem-aventurado Pio, Sumo Pontífice, nem falte ao pastor a obediência do rebanho nem ao rebanho o cuidado do pastor”.

O que Deus vos conceda a todos segundo a medida da sua divina generosidade.

PAPA PIO XII

Notas: Os Cânones do direito canônico citados por Pio XII nas duas alocuções

329 &1 Os bispos são sucessores dos Apóstolos, e por instituição divina estão colocados a frente de igrejas particulares que governam com potestade ordinária sob a autoridade do Pontífice Romano.

818 Sendo reprovado todo costume contrário, o sacerdote que celebra deve observar com esmero e devoção as rubricas dos livros rituais, e deve guardar-se de acrescentar a seu arbítrio outras cerimônias ou preces.

1257 Unicamente à Sé Apostólica pertence ordenar a sagrada liturgia e aprovar os livros litúrgicos.

1326 Os Bispos, mesmo quando não são infalíveis cada um de por si, nem reunidos em Concílios particulares, mas no obstante, sob a autoridade do Romano Pontífice, são verdadeiros doutores ou mestres dos fiéis que lhes foram encomendados.

1328 A ninguém está permitido exercer o ministério da pregação, se não tem recebido missão do Superior legítimo, que lhe outorgue faculdade especial ou lhe confira um ofício ao qual por disposição dos sagrados cânones fosse inerente o cargo de pregar.

1406&7 e 1406&8 Estão obrigados a fazer a profissão de fé, segundo a fórmula aprovada pela Sé Apostólica:

– Diante do Ordinário local ou de seu delegado, o Vigário Geral, os párocos e aqueles a quem fosse conferido qualquer benefício, ainda que seja manual, que tenha responsabilidade de almas; o reitor, os professores de sagrada teologia, de direito canônico e de filosofia nos Seminários, ao começo de cada curso ou pelo menos ao começar o cargo; todos os que vão se ordenar de subdiáconos; os censores de livros, de que fala o cânone 1393; os sacerdotes destinados a ouvir confissões e os pregadores sagrados, antes que se lhes conceda faculdade para desempenhar tais cargos.

– Diante do Ordinário ou de seu delegado, o reitor de Universidade ou de Faculdade, e diante do Reitor ou de seu delegado, todos os professores da Universidade ou da Faculdade canonicamente erigida, ao princípio de cada curso, ou pelo menos quando comecem a exercer o cargo; e também os que, feito o exame, recebem os graus acadêmicos.

Grande número de Cardeais, Arcebispos e Bispos reuniu-se em Roma por ocasião da canonização de S. Pio X e da proclamação da festa da realeza de Maria. Sua Santidade o Papa Pio XII aproveitou estas duas solenes oportunidades (31 de maio e 2 de novembro de 1954) para proferir graves advertências sobre a competência da Igreja no seu tríplice múnus de ensinar, santificar e governar os fiéis.