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Caros amigos e benfeitores,

Faz já quarenta anos, no dia 1º de novembro de 1970, que Dom François Charrière, bispo de Lucerna, Genebra e Friburgo, assinava o decreto de reconhecimento da Fraternidade São Pio X. Quem teria pensado que atravessaríamos estes quarenta anos, como acabamos de fazer? Pois a soma dos acontecimentos que a nossa Congregação encontrou desde então ultrapassa qualquer imaginação. Começando pela sua injusta supressão que lhe foi infligida cinco anos depois…

O Cardeal Oddi resumiu a razão desta situação dizendo que Dom Lefebvre tinha atuado movido por um amor grande demais pela Igreja! Argumento surpreendente para explicar uma série impressionante de condenações. O certo é que nossa Congregação conheceu um destino único nos anais da história da Igreja.

A sagração dos quatro bispos aumentou, certamente, a controvérsia na qual a Fraternidade estava implicada desde o início, ou quase, de sua fundação. E no entanto, esta polêmica não deixou de produzir seus efeitos em pessoas que se empenhavam em conservar todos os princípios mais caros à Igreja Católica. Eles se gloriam do título de fiéis e estão de tal modo unidos a estes elementos essenciais que mereceram serem chamados de tradicionalistas. Eles têm horror à rebeldia, à subversão, à revolução, e apesar disso, desde o começo eles apareceram como rebeldes, contestatários em oposição aberta com a autoridade, uma autoridade que eles afirmam reconhecer sinceramente e à qual, no entanto, eles se  opõem firmemente.

Sim, as contradições encontradas no decurso de nossa pequena história nos fazem dizer, não sem uma comovida estupefação, as palavras de São Paulo contando as provas que ele mesmo passava então: Entre a honra e a desonra, entra a má e a boa reputação; considerados como impostores, e no entanto verazes, como desconhecidos, no entanto bem conhecidos, tidos como moribundos, e eis que vivemos, como castigados e no entanto estamos ilesos, como tristes, nós que estamos sempre alegres, como pobres, quando enriquecemos a muitos, como não tendo nada, apesar de que possuímos tudo. (2Cor. 6, 8-10).

Podemos ir ainda mais longe nesta reflexão, especialmente quando vemos que somos punidos por causa da nossa obediência, em particular pelo nosso apego às verdades afirmadas pela Igreja de sempre e pela nossa oposição aos erros modernistas condenados por Ela. Eis aí o que nos valeu tantas maldições da parte daqueles que hoje têm a autoridade na Igreja. Até o ponto de que, ainda hoje, alguns nos consideram ou nos declaram cismáticos. Nós queremos simplesmente levar a Boa Nova da salvação, e no entanto nossos projetos e iniciativas são considerados como perigosos por muitos; a menor de nossas ações provoca reações completamente desproporcionadas. Será que tomariam tão grandes precauções se fossem obras do demônio? Nós levamos realmente em nós este sinal anunciado pelo profeta Simeão à Santíssima Virgem, o sinal de contradição de Nosso Senhor. Mas se isso traz consigo muitos sofrimentos, incompreensões, nós nos alegramos de poder ter parte nos sofrimentos de Nosso Senhor e na bem aventurança, a última como escreve São Mateus: Bem aventurados sereis quando os homens vos insultarem e perseguirem e disserem toda sorte de males contra vós mentindo, por causa de Mim. Felicitai-vos e alegrai-vos, porque vossa recompensa é grande nos céus. (Mt. 5, 11-12).

Todos esses elementos nos lembram que a Igreja tem aqui neste mundo o título de “militante”, pois deve sempre combater. O fim que lhe foi dado por Nosso Senhor é o de salvar as almas, o qual não se obtém sem luta, uma luta essencialmente espiritual, mas bem real, que comportam às vezes conjecturas temporais mais ou menos acentuadas. Nosso Senhor Jesus Cristo empreendeu uma batalha definitiva contra o demônio para arrancar-lhe essas pobres almas que vêem a luz desse mundo sob seu poder pela mancha do pecado original. Esta batalha é a de todos os séculos; esquecê-la significa condenar-se a não entender nada da história dos homens. Quanto a nós, levamos todos os dias as feridas deste combate que é uma ocasião de uma grande alegria. Sempre os autores espirituais consideraram as provas como um bom sinal e até mesmo um sinal de predileção. Como atualmente faz-se tudo para esquecer ou até negar essas verdades fundamentais do combate espiritual, ficamos contentes de contribuir com a nossa pequena parte para manter viva em nossa carne essa verdade.

Isso não significa que não desejemos a paz, que virá a seu tempo, conforme os desígnios da Providência, à qual não queremos em absoluto adiantar-nos.

Nisto seguimos de perto o caminho traçado por nosso venerável fundador, Dom Marcel Lefebvre. Caminho luminoso no meio das trevas das mais terríveis provas que podem suceder a um católico: encontrar-se em situação de contradição com as autoridades romanas e até mesmo com o Vigário de Cristo. Esses quarenta anos estão tão cheios de lições que nos fazem ver como a percepção de Dom Lefebvre era exata: sobre o Concílio, sobre as causas da crise, sobre a decadência do sacerdócio, sobre o enfraquecimento da doutrina, sobre a simpatia jamais vista da Igreja pelo mundo e pelas outras religiões, sobre o liberalismo. Mas também sobre os remédios que devem ser usados, que são a fidelidade tanto à doutrina como à disciplina multissecular da Igreja. Realmente não devemos inventar nada! Os meios dados por Nosso Senhor à sua Igreja são sempre fecundos e o serão sempre, pois eles procedem de Deus nosso Criador e Salvador; a Fé e a graça ultrapassam todas as circunstâncias de tempo e lugar, todas as contingências, pois elas ultrapassam essencialmente a natureza humana, suas capacidades, suas esperanças. Esses meios são propriamente sobrenaturais.

É por isso que o caminho de Dom Lefebvre é sempre atual. O que ele dizia a trinta ou quarenta anos, está ainda perfeitamente adequado hoje. Isso nos obriga a uma grande ação de graças a Deus por ter-nos enviado – a nós e a toda a Igreja – um bispo como ele. Não há dúvida de que se as suas valiosas recomendações fossem seguidas pela Igreja, todo o Corpo Místico estaria melhor e sairia rapidamente desta crise. Mas, pelo contrário, ao observar o que acontece na Igreja, mesmo se aqui ou ali aparecem vislumbres de esperança, devemos reconhecer que em seu conjunto a barca segue seu curso começado no Vaticano II – certamente um pouco menos rápido com Bento XVI, mas ao modo como um paraquedas diminui a velocidade de uma caída livre.

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Entre as lições que Dom Lefebvre nos deixou, queremos sublinhar duas que ele mesmo unia estreitamente.

A primeira se refere à realeza social de Nosso Senhor Jesus Cristo, ou seja o título de direito de Nosso Senhor, verdadeiro Deus, Criador de todo o universo, por quem e para quem tudo foi criado (cfr. Col. 1), e verdadeiro homem. Todo poder me foi dado no céu e na terra. Essas palavras nos vêm diretamente de seus divinos lábios. Essa realeza expressa bem que, mesmo se a primeira missão de Jesus Cristo é a salvação das almas, ela não suprime em nada suas outras prerrogativa, as quais Ele dispõe em ordem a esse fim primeiro. Como é muito mais fácil para as almas salvar-se quando a sociedade civil, imbuída dos princípios que lhe inspira o direito cristão, exerce sobre elas essa influencia benéfica pelas leis conforme ao direito natural e à lei eterna. Não é preciso refletir muito para dar-se conta dos benefícios que a sociedade temporal poderia e deveria aportar aos homens que a compõem e que Deus criou para um fim sobrenatural. Dom Lefebvre resumiu esta questão numa frase lapidar: Como o reino de Nosso Senhor Jesus Cristo não é mais o centro das preocupações e das atividades daqueles que são nossos superiores que eles perderam o senso de Deus e do sacerdócio. Frase forte e extremamente profunda, que expressa todo o drama da Igreja em nossos tempos. À força de querer alinhar-se pelo mundo, perdeu-se de vista o essencial, Deus, e também aquele que foi escolhido por Deus para conduzir os homens a Ele, o sacerdote.

Paulo VI já dizia no fim do Concílio que mais que ninguém a Igreja tinha o culto do Homem. João Paulo II falava de antropocentrismo da Igreja. Essas expressões mostram bem o desvio realizado depois do Vaticano II: a nova preocupação da Igreja é o homem. Antes – e assim deveria ser por todos os tempos, pois não pode haver outro fim – era a gloria de Deus, inseparável da salvação das almas. Servir a Deus, honrá-Lo glorificá-Lo, eis aí a razão de ser dos homens, e por conseqüência também a da Igreja! Seguindo as inclinações do mundo é como se tivéssemos esquecido de Deus até mesmo no seu Templo, para substituí-Lo pelo culto do homem.

Que as autoridades da Igreja ponham a Deus Nosso Senhor no seu devido lugar e a restauração da Igreja se fará como por milagre! Certamente não se trata de confundir tudo, a doutrina católica sempre reconheceu que a Igreja e a sociedade civil são duas sociedades perfeitas, distintas, tendo cada qual seu fim e seus meios próprios. Mas isso não elimina a Deus nem de uma nem de outra.

O mundo libera e socialista quer livrar-se do jugo de Deus, não há nada mais funesto para a criatura humana. A situação presente do mundo, que nunca levou tão longe suas aspirações de independência do seu Criador como hoje em dia, evidencia todos os dias o funesto resultado de seus desígnios insensatos. Por todos os lados vemos a instabilidade, o medo. O que prevêem os governantes para os anos próximos? E os financeiros e economistas?

Se o momento ainda não chegou para que Jesus Cristo reine, então também não chegou o momento para que os reinos durem (Cardeal Pie). Todas as coisas, e não somente as sobrenaturais, têm nEle a sua firmeza. Um mundo sem Deus é insensato. Chega a ser um absurdo. O fim de todas as coisas é e será sempre Deus. Por tanto o melhor meio de chegar à verdadeira paz e prosperidade neste mundo é respeitar e submeter-se ao seu Criador.

Eis aí o que a Igreja deve lembrar ao mundo de hoje, e onde intervém o padre, cuja missão Dom Lefebvre nos mostra. Essa é a segunda lição, intimamente ligada à primeira.

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O mundo caído, do mesmo modo que a natureza humana caída, não pode encontrar sua perfeição fora dAquele que foi enviado pelo Pai. Mesmo que a missão de N. Senhor seja essencialmente sobrenatural – pois ela se refere à salvação dos homens, sua redenção, sua purificação do pecado pelo sacrifício expiatório da Cruz – ela se dirige aos homens que estão ao mesmo tempo destinados a este fim sobrenatural e membros da sociedade humana e civil. Não há nenhum lugar para a oposição ou contradição no plano da salvação; antes pelo contrário, a harmonia, a mais alta, é necessária, cada qual permanecendo em seu lugar e em sua ordem.

Assim o padre, entregue inteiramente à perpetuação do sacrifício de Nosso Senhor Sumo Sacerdote, renderá a Deus o culto e homenagem que lhe são devidos, e ao mesmo tempo levará aos homens os benefícios de Deus. O mundo sempre teve necessidade desta mediação, e sempre ela foi obra do padre, que, alter Christus, realiza um papel central para o futuro dos homens.

Restaurar todas as coisas em Cristo não pode ser uma opinião entre outras, mas sim claramente uma necessidade que procede da mesma natureza das coisas, de sua condição de criaturas. Pouco importa que a sociedade moderna se mostre impenetrável a este discurso! Que ela busque seus sonhos, o despertar será tanto mais doloroso! Mais que nunca a Igreja tem algo a dizer ao mundo. E será sempre a mesma coisa.

Os acontecimentos destes últimos anos mostram um certo movimento de volta, mesmo que discreto, mas bem real. Não há dúvida de que a Fraternidade São Pio X pode fazer uma contribuição neste campo muito importante. Mas ainda é bem difícil de prever de mais concreto em nossas relações com Roma.

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Queremos, enfim, continuar com o nosso movimento mariano, confirmar a necessidade da consagração ao Coração Imaculado de Maria e seguir com nossa campanha de oração. Lancemo-nos ao trono de graças de Nossa Senhora; pela multidão de rosas de nossos terços ofereçamos nossas homenagens, continuemos nosso pedido e intensifiquemos nossas súplicas: que o seu Coração Imaculado e doloroso triunfe! Que Ela se digne apreçar este tempo bendito.

Não lhes esquecemos, estimados amigos e benfeitores, em nossas orações e ações de graças quotidianas. Que Deus lhes retribua o cêntuplo a sua generosidade, especialmente em graças eternas e que Ele os abençoe copiosamente.

Menzingen, 1º Domingo do Advento, 28 de novembro de 2010.

+ Bernard Fellay