04/10/1903

 

CARTA ENCÍCLICA

Aos veneráveis Irmãos Patriarcas, Primazes, Arcebispos, Bispos e outros Ordinários
em paz e comunhão com a Sé Apostólica.

 

Veneráveis Irmãos, Saudação e Benção Apostólica.

Sua elevação ao Pontificado.

1. No momento de vos dirigir pela primeira vez a palavra do alto desta cátedra apostólica a que fomos elevado por um impenetrável conselho de Deus, inútil é lembrar-vos com que lágrimas e com que ardentes preces Nos esforçamos por desviar de nós o múnus tão pesado do Pontificado supremo. Mau grado a desproporção absoluta dos méritos, parece-nos podermo-nos apropriar das queixas de S. Anselmo quando, a despeito das suas oposições e das suas repugnâncias, se viu forçado a aceitar a honra do episcopado. Os testemunhos de tristeza que ele então deu, Nós podemos produzi-los por Nossa vez, para mostrarmos em que disposições de alma e de vontade aceitamos a missão tão temível de pastor do rebanho de Jesus Cristo. As lágrimas dos meus olhos me são testemunhas, escrevia ele (Ep. 1.III,1), assim como os gritos e, por assim dizer, os rugidos que meu coração soltava na sua angústia profunda. Eles foram tais que não me lembro de haver deixado escapar semelhantes em nenhuma dor antes do dia em que essa calamidade do arcebispado de Cantuária veio desabar sobre mim. Não puderam ignorá-lo aqueles que, naquele dia, viram de perto o meu rosto. Mais semelhante a um cadáver do que a um homem vivo, eu estava pálido de consternação e de dor. A essa eleição, ou, antes, a essa violência, resisti até agora, digo-o em verdade, tanto quanto me foi possível. Mas agora, a gosto ou a contragosto, eis-me forçado a reconhecer cada vez mais claramente que os desígnios de Deus são contrários aos meus esforços, de tal sorte que nenhum meio me resta de lhes escapar. Vencido menos pela violência dos homens do que pela violência de Deus, contra quem prudência alguma poderia prevalecer, depois de fazer todos os esforços em meu poder para que esse cálice se afaste de mim sem que eu o beba, não vejo outra determinação a tomar senão a de renunciar ao meu senso próprio, à minha vontade, e entregar-me inteiramente ao juízo e a vontade de Deus.

Leão XIII

2. Certamente, a Nós também não faltavam numerosos e sérios motivos para Nos furtarmos ao fardo. Sem contar que, em razão da Nossa pequenez, a nenhum título podíamos considerar-Nos digno das honras do Pontificado, como não Nos sentirmos profundamente comovido vendo-Nos escolhido para suceder àquele que, durante vinte e seis anos, ou pouco falta, em que governou a Igreja com sabedoria consumada, deu mostras de tal vigor de espírito e de tão insignes virtudes, que se impôs à admiração dos próprios adversários e, pelo brilho das obras, imortalizou a sua memória?

Situação calamitosa do mundo.

3. Além disto, e para passar em silêncio muitas outras razões, Nós experimentávamos uma espécie de terror em considerar as condições funestas da humanidade na hora presente. Pode-se ignorar a doença profunda e tão grave que, neste momento muito mais do que no passado, trabalha a sociedade humana, e que, agravando-se dia a dia e corroendo-a até à medula, arrasta-a à sua ruína? Essa doença, Veneráveis Irmãos, vós a conheceis, e é, para com Deus, o abandono e a apostasia; e, sem dúvida, nada há que leve mais seguramente à ruína, consoante essa palavra do profeta: Eis que os que se afastam de vós perecerão (Sl 72,27). A tamanho mal Nós compreendíamos que, em virtude do múnus pontifical a Nós confiado, competia-nos dar remédio; achávamos que a Nós se dirigia esta ordem de Deus: Eis que hoje te estabeleci sobre as nações e os reinos para arrancares e para destruíres, para edificares e para plantares (Jer 1,10); mas, plenamente cônscio da Nossa fraqueza, Nós temíamos assumir uma obra eriçada de tantas dificuldades, e que, no entanto, não admite delongas.

Restaurar tudo em Cristo.

Contudo, já que a Deus aprouve elevar a Nossa baixeza até esta plenitude de poder, Nós haurimos coragem n’Aquele que nos conforta; e, pondo mãos a obra, sustentado pela força divina, declaramos que o nosso fito único, no exercício do Sumo Pontificado, é restaurar tudo em Cristo (Ef 1,10) a fim de que Cristo seja tudo e em tudo (Col 3,14).

4. Haverá, sem dúvida, quem, aplicando às coisas divinas a curta medida das coisas humanas, procure perscrutar os nossos pensamentos íntimos e torcê-los às suas vistas terrenas e aos seus interêsses de partido. Para cortar com essas vãs tentativas, em toda verdade afirmamos que não queremos ser, e que, com o socorro divino, não havemos de ser, no meio das sociedades humanas, outra coisa senão o ministro de Deus que nos revestiu da sua autoridade. Os interêsses D’Ele são os Nossos interêsses; consagrar-lhes as Nossas forças e a Nossa vida, tal é a nossa resolução inabalável. E é por isto que, se Nos pedirem um lema que traduza o próprio fundo de Nossa alma, jamais daremos outro senão este: restaurar todas as coisas em Cristo.

5. Querendo, pois, empreender e prosseguir esta grande obra, Veneráveis Irmãos, o que redobra o Nosso ardor é a certeza de que Nos sereis nisso valorosos auxiliares. Se duvidássemos disto, pareceríamos ter-vos, bem erradamente aliás, por mal informados ou indiferentes, em face da guerra ímpia que foi suscitada e que em quase toda a parte vai prosseguindo contra Deus. Nos nossos dias, sobejamente verdadeiro é que as nações fremiram e os povos meditaram projetos insensatos (Sl 2,1) contra o seu Criador; e quase comum se tornou este grito dos seus inimigos: Retirai-vos de nós (Job 21,14). Daí, na maioria, uma rejeição completa de todo o respeito de Deus. Daí hábitos de vida, tanto privada como publica, em que nenhuma conta se faz da soberania de Deus. Bem mais, não há esforço nem artifício que se não ponha por obra para abolir inteiramente a lembrança d’Ele, e até a sua noção.

Audácia dos maus. “o homem usurpou o lugar do criador”

6. Quem pesa estas coisas tem direito de temer que uma tal perversão dos espíritos seja o começo dos males anunciados para o fim dos tempos, e como que a sua tomada de contacto com a terra, e que verdadeiramente o filho de perdição de que fala o Apóstolo (2 Tess 2,3) já tenha feito o seu advento entre nós, tamanha é a audácia e tamanha a sanha com que por toda parte se lança o ataque à religião, com que se investe contra os dogmas da fé, com que se tende obstinadamente a aniquilar toda a relação do homem com a Divindade! Em compensação, e é este, no dizer do mesmo Apóstolo, o caráter próprio do Anticristo, com uma temeridade sem nome o homem usurpou o lugar do Criador, elevando-se acima de tudo o que traz o nome de Deus. E isso a tal ponto que, impotente para extinguir completamente em si a noção de Deus, ele sacode entretanto o jugo da sua majestade, e dedica a si mesmo o mundo visível à guisa de templo, onde pretende receber as adorações dos seus semelhantes. Senta-se no templo de Deus, onde se mostra como se fosse o próprio Deus (2 Tess 2,2).

Vitória certa de Deus.

7. Qual venha a ser o desfecho desse combate travado contra Deus por uns fracos mortais, nenhum espírito sensato pode pô-lo em dúvida. Certamente, ao homem que quer abusar da sua liberdade lícito é violar os direitos e a autoridade suprema do Criador; mas ao Criador fica sempre a vitória. E ainda não é dizer o bastante: a ruína paira mais de perto sobre o homem justamente quando mais audacioso ele se ergue na esperança do triunfo. É o de que o próprio Deus nos adverte nas Sagradas Escrituras. Dizem elas que Ele fecha os olhos sobre os pecados dos homens (Sab 11,24), como que esquecido do seu poder e da sua majestade; mas em breve, após essa aparência de recuo, acordando como um homem cuja força a embriaguez aumentou (Sl 77,65), Ele quebra a cabeça dos seus inimigos (Sl 67,22), afim de que todos saibam que o Rei de toda a terra é Deus (Sl 46,8), e afim de que os povos compreendam que não passam de homens (Sl 9,20).

Deus exige nossa colaboração.

8. Tudo isso, Veneráveis Irmãos, com fé certa sustentamos e esperamos. Mas esta confiança não nos dispensa, naquilo que de nós depende, de apressarmos a obra divina, não somente por uma oração perseverante: Levantai-vos, Senhor, e não permitais que o homem se prevaleça da sua força (Sl 9,19), mais ainda, e é o que mais importa, pela palavra e pelas obras, em plena luz, afirmando e reivindicando para Deus a plenitude do seu domínio sobre os homens e sobre toda criatura, de sorte que os seus direitos e o seu poder de mandar sejam reconhecidos por todos com veneração, e praticamente respeitados.

O partido de Deus.

9. Cumprir esses deveres não é apenas obedecer às leis da natureza, é trabalhar também para vantagem do gênero humano. De feito, Veneráveis Irmãos, quem poderia deixar de sentir a sua alma presa de temor e de tristeza em vendo a maioria dos homens, enquanto, por outro lado, se exaltam, e com justa razão, os progressos da civilização, vendo-os desencadear-se com tal encarniçamento uns contra os outros, que se diria um combate de todos contra todos? Sem dúvida, o desejo da paz está em todos os corações, e não há ninguém que não a chame por todos os seus anseios. Mas essa paz, insensato de quem a busca fora de Deus; porquanto expulsar a Deus é banir a justiça; e, afastada a justiça, toda a esperança de paz torna-se uma quimera. A paz é obra da justiça (Is 32,17). Pessoas há, e, não o ignoramos, em grande número, as quais, impelidas pelo amor da paz, isto é, da tranqüilidade da ordem, se associam e se agrupam para formarem o que elas chamam de partido da ordem. Ai! Vãs esperanças, trabalho perdido! De partidos de ordem capazes de restabelecer a tranqüilidade no meio da perturbação das coisas, só há um: o partido de Deus. É, pois, este que nos cumpre promover; é a ele que nos cumpre trazer o maior número de adeptos possível, por menos que tenhamos a peito a segurança publica.

10. Todavia, Veneráveis Irmãos, essa volta das nações ao respeito da majestade e da soberania divina, por mais esforços, aliás, que façamos para realizá-lo, não advirá senão por Jesus Cristo. De feito, o Apóstolo adverte-nos que ninguém pode lançar outro fundamento senão aquele que foi lançado e que é o Cristo Jesus (I Cor 3,11). Só a Ele foi que o Pai santificou e enviou a este mundo (Jo 10, 36), esplendor do Pai e figura da sua substância (Heb 1,3), verdadeiro Deus e verdadeiro homem sem o qual ninguém pode conhecer a Deus como convém, pois ninguém conhece o Pai a não ser o Filho e aquele a quem o Filho quiser revelá-lo (Mt 11,27).

Reconduzir os homens ao império de Cristo.

11. Donde se segue que restaurar tudo em Cristo e reconduzir os homens à obediência divina são uma só e mesma coisa. E é por isto que o fito para o qual devem convergir todos os nossos esforços é reconduzir o gênero humano ao império de Cristo. Feito isto, o homem achar-se-á, por isso mesmo, reconduzido a Deus. Mas – queremos dizer – não um Deus inerte e descuidoso das coisas humanas, como nos seus loucos devaneios o forjaram os materialistas, senão um Deus vivo e verdadeiro, em três pessoas na unidade de natureza, autor do mundo, estendendo a todas as coisas a sua infinita Providência, enfim legislador justíssimo que pune os culpados e assegura às virtudes a sua recompensa.

A via é a Igreja.

12. Ora, onde está a via que nos dá acesso a Jesus Cristo? Está debaixo dos nossos olhos: é a Igreja. Diz-no-lo com razão São João Crisóstomo: a Igreja é a tua esperança, a Igreja é a tua salvação, a Igreja é o teu refugio (Hom. de capto Eutropio, n. 6).

13. Foi para isso que Cristo a estabeleceu, depois de adquiri-la ao preço do seu sangue; foi para isso que Ele lhe confiou a sua doutrina e os preceitos da sua lei, prodigalizando-lhe ao mesmo tempo os tesouros da graça divina para a santificação e salvação dos homens.

14. Vedes, pois, Veneráveis Irmãos, que obra nos é confiada, a Nós e a vós. Trata-se de reconduzir as sociedades humanas, desgarradas longe da sabedoria de Cristo, reconduzi-las à obediência da Igreja; a Igreja, por seu turno, submetê-las-á a Cristo, e Cristo a Deus. E, se pela graça divina Nos for dado realizar esta obra, teremos a alegria de ver a iniqüidade ceder lugar à justiça, e folgaremos de ouvir uma grande voz dizendo do alto dos céus: Agora é a salvação, e a virtude, e o reino de nosso Deus e o poder de seu Cristo (Apoc. 12,10).

15. Todavia, para que o resultado corresponda aos Nossos votos, mister se faz, por todos os meios e à custa de todos os esforços, desarraigar inteiramente essa detestável e monstruosa iniqüidade própria do tempo em que vivemos e pela qual o homem se substitui a Deus. Restabelecer na sua antiga dignidade as leis santíssimas e os conselhos do Evangelho; proclamar bem alto as verdades ensinadas pela Igreja sobre a santidade do matrimônio, sobre a educação da infância, sobre a posse e o uso dos bens temporais, sobre os deveres dos que administram a coisa pública; restabelecer, enfim, o justo equilíbrio entre as diversas classes da sociedade segundo as leis e as instituições cristãs.

16. Tais são os princípios que, para obedecer à divina vontade, Nós Nos propomos aplicar durante todo o curso do Nosso Pontificado e com toda a energia de Nossa alma.

17. O vosso papel, Veneráveis Irmãos, será secundar-Nos pela vossa santidade, pela vossa ciência, pela vossa experiência, e sobretudo pelo vosso zelo da glória de Deus, não visando a nada mais do que a formar em todos Jesus Cristo (Gal 4,19).

OS MEIOS:

1) Formar Cristo nos Sacerdotes.

18. Que meios importa empregar para atingir um fim tão elevado? Parece supérfluo indicá-los, tanto eles se apresentam à mente por si mesmos. Sejam os vossos primeiros cuidados formar Cristo naqueles que, pelo dever da sua vocação, são destinados a formá-lo nos outros. Queremos falar dos sacerdotes, Veneráveis Irmãos. Porquanto todos aqueles que são honrados com o sacerdócio devem saber que tem, entre os povos com que convivem, a mesma missão que Paulo testava haver recebido, quando pronunciava estas ternas palavras: Meus filhinhos, a quem eu gero de novo, até que Cristo se forme em vós (Gal 4). Ora, como poderão eles cumprir um tal dever, se eles próprios não forem primeiramente revestidos de Cristo? e revestidos até poderem dizer com o Apóstolo: Vivo, já não eu, mas Cristo vive em mim (Gal 2,20). Para mim Cristo é a minha vida (Fil 1,21). Por isto, embora todos os fiéis devam aspirar ao estado de homem perfeito, à medida da idade da plenitude de Cristo (Ef 4,3), essa obrigação incumbe principalmente àquele que exerce o ministério sacerdotal. Por isto é ele chamado ‘outro Cristo’; não somente porque participa do poder de Jesus Cristo, mas porque deve imitar-Lhe as obras e, destarte, reproduzir-Lhe a imagem em si mesmo.

Cuidados dos seminaristas.

19. Se assim é, Veneráveis Irmãos, quão grande não deve ser a vossa solicitude para formar o clero na santidade! Não há negócio que não deva ceder o passo a este. E a conseqüência é que o melhor e o principal do vosso zelo deve aplicar-se aos vossos Seminários, para introduzir neles uma tal ordem e lhes assegurar um tal governo, que neles se veja florescerem lado a lado a integridade do ensino e a santidade dos costumes. Fazei do Seminário as delícias do vosso coração, e não descureis coisa alguma daquilo que, na sua alta sabedoria, o Concílio de Trento prescreveu para garantir a prosperidade dessa instituição. Quando chegar o tempo de promover às Sagradas Ordens os jovens candidatos, ah! Não vos esqueçais daquilo que São Paulo escrevia a Timóteo: Não imponhas precipitadamente as mãos a ninguém (I Tim. 5,22); bem vos persuadindo de que, as mais das vezes, tais quais forem aqueles que admitirdes ao sacerdócio, tais serão também, depois, os fiéis confiados à solicitude deles. Não olheis, pois, a nenhum interêsse particular, seja de que natureza fôr; mas tende ùnicamente em mira Deus, a Igreja, a felicidade eterna das almas, a fim de, como nos adverte o Apóstolo, evitardes participar dos pecados de outrem (Ibid.).

Cuidados dos novos Sacerdotes.

20. Alias, nem por isto escapem às solicitudes do vosso zelo os novos padres que saem do Seminário. Estreitai-os, recomendam-vo-lo do mais profundo de Nossa alma, estreitai-os com freqüência ao vosso coração, que deve arder de um fogo celeste; aquecei-os, inflamai-os, afim de que eles, não mais aspirem senão a Deus e à conquista das almas. Quanto a Nós, Veneráveis Irmãos, velaremos com o maior cuidado por que os membros do clero não se deixem surpreender pelas manobras insidiosas, de uma certa ciência nova que se enfeita com a mascara da verdade e onde se não respira o perfume de Jesus Cristo; ciência mendaz que, com o favor de argumentos falazes e pérfidos, se esforça por abrir caminho aos erros do racionalismo ou do semi-racionalismo, e contra a qual o Apóstolo já advertia ao seu caro Timóteo premunir-se, quando lhe escrevia: Guarda o depósito, evitando as novidades profanas na linguagem, tanto quanto as objeções de uma ciência falsa, cujos partidários com todas as suas promessas faliram na fé (I Tim 6,20ss). Não quer isto dizer que não julguemos dignos de elogios esses padres novos que se consagram a úteis estudos em todos os ramos da ciência, e assim se preparam para defender melhor a verdade e para refutar mais vitoriosamente as calúnias dos inimigos da fé. Não podemos, todavia, dissimulá-lo, e declaramo-lo, mesmo muito abertamente: as Nossas preferências são e serão sempre por aqueles que, sem descurarem as ciências eclesiásticas e profanas, se votam mais particularmente ao bem das almas no exercício dos diversos ministérios que ficam bem ao padre animado de zelo pela honra divina.

2) Necessidade do Ensino Religioso.

21. É para o Nosso coração uma grande tristeza e uma contínua dor (Rom. 9,2) verificar que se pode aplicar aos nossos dias esta queixa de Jeremias: As crianças pediram pão, e não havia ninguém para lhes partir esse pão (Jer. 4,4). Efetivamente, não falta no clero quem, cedendo a gostos pessoais, dispenda a sua atividade em coisas de uma utilidade mais aparente do que real; ao passo que menos numerosos são talvez os que, a exemplo de Cristo, tomem para si mesmos as palavras do Profeta: O Espírito do Senhor deu-me a unção, enviou-me a evangelizar os pobres, a curar os que têm o coração partido, a anunciar os cativos a libertação, e a luz aos cegos (Lc 4,18-19). E, no entanto, visto que o homem tem por guia a razão e a liberdade, a ninguém escapa que o principal meio de restituir a Deus o seu império sobre as almas é o ensino religioso. Quantos que são hostis a Jesus Cristo, que horrorizam a Igreja e o Evangelho, bem mais por ignorância do que por malícia, e dos quais se poderia dizer: Blasfemam tudo o que ignoram (Jud. 10)! Estado de alma que verificamos não sòmente no povo e no seio das classes mais humildes, as quais a sua própria condição torna mais acessíveis ao erro, mas até nas classes elevadas, e naqueles mesmos que possuem, aliás, uma instrução pouco comum. Daí, em muitos, o deperecimento da fé; pois não se deve admitir que sejam os progressos da ciência que a sufoquem; é, muito antes, a ignorância; de tal sorte que, onde quer que a ignorância é maior, aí também a incredulidade faz maiores devastações. Foi por isto que Cristo deu aos apóstolos este preceito: Ide e ensinai todas as nações (Mt 28,19).

3) A Caridade Cristã.

22. Mas, para que esse zelo em ensinar produza os frutos que dele se esperam e sirva para formar Cristo em todos, nada mais eficaz do que a caridade; gravemos isto fortemente na nossa memória, ó Veneráveis Irmãos, pois o Senhor não está na comoção (III Rs 19,11). Debalde esperaríamos atrair as almas a Deus por um zelo impregnado de azedume; exprobrar duramente os erros, e repreender os vícios com aspereza, muitíssimas vezes causa mais dano do que proveito. Verdade é que o Apóstolo, exortando Timóteo, lhe dizia: Acusa, suplica, repreende, mas acrescentava: com toda paciência (II Tim 4,2). Nada mais conforme aos exemplos que Jesus Cristo nos deixou. É Ele quem nos dirige este convite: Vinde a mim vós todos que sofreis e que gemeis sob o fardo, e eu vos aliviarei (Mt 11,28). E, no seu pensamento, esses enfermos e esses oprimidos outros não eram senão os escravos do erro e do pecado. De feito, que mansidão nesse divino Mestre! Que ternura, que compaixão para com todos os infelizes! O seu divino Coração é-nos admiràvelmente pintado por Isaías nestes termos: Pousarei sobre ele o meu espírito; ele não contestará nem elevará a voz: jamais acabará de quebrar o caniço meio partido, nem extinguirá a mecha que ainda fumega (Is 42,1ss). Essa caridade paciente e benigna (I Cor 13,4) deverá ir ao encontro daqueles mesmos que são nossos adversários e nossos perseguidores. Eles nos maldizem, assim o proclamava São Paulo, e nós bendizemos; perseguem-nos, e nós suportamos; blasfemam-nos, e nós oramos (I Cor. 4,12,ss). Talvez que, afinal de contas, eles se mostrem piores do que são realmente. O contacto com os outros, os preconceitos, a influência das doutrinas e dos exemplos, enfim o respeito humano, conselheiro funesto, inscreveram-nos no partido da impiedade; mas, no fundo, a vontade deles não é tão depravada como eles se comprazem em fazer crer. Porque então não haveríamos de esperar que a chama da caridade dissipe enfim as trevas da alma deles, e faça reinar nelas, com a luz, a paz de Deus? Mais de uma vez o fruto do nosso trabalho talvez se faça esperar; mas a caridade não se cansa, persuadida de que Deus mede a suas recompensas não pelos resultados, mas pela boa vontade.

Todos os fiéis devem colaborar.

23. Entretanto, Veneráveis Irmãos, absolutamente não é Nosso pensamento que, nessa obra tão árdua da renovação dos povos por Cristo, vós e o vosso clero fiqueis sem auxiliares. Sabemos que Deus recomendou a cada um o cuidado do seu próximo (Ecli 17,12). Não são, pois, sòmente os homens revestidos do sacerdócio, mas sim todos os fiéis sem exceção, que devem dedicar-se aos interêsses de Deus e das almas: certamente, não cada um ao sabor das suas vistas e das suas tendências, mas sempre sob a direção e segundo a vontade dos Bispos, pois o direito de mandar, de ensinar, de dirigir não pertence a ninguém mais na Igreja senão a vós, estabelecidos pelo Espírito Santo para regerdes a Igreja de Deus (At 20,28).

a) Nas associações.

24. Associar-se entre católicos com intuitos diversos, mas sempre para o bem da religião, é coisa que, de há longo tempo, tem merecido a aprovação e as bênçãos dos Nossos predecessores. Nós também não hesitamos em louvar tão pela obra, e vivamente desejamos que ela se difunda e floresça por toda parte, nas cidades como nos campos. Mas, ao mesmo tempo, entendemos que essas associações tenham por primeiro e principal objeto fazer que os que nelas se alistam cumpram fielmente os deveres da vida cristã. Pouco importa, em verdade, agitar sutilmente múltiplas questões e dissertar com eloqüência sobre direitos e deveres, se tudo isso não redunda na ação. A ação, eis o que reclamam os tempos presentes; mas uma ação que se aplique sem reserva à observância integral e escrupulosa das leis divinas e das prescrições da Igreja, à profissão aberta e ousada da religião, ao exercício da caridade sob todas as suas formas, sem preocupação alguma de si mesmo nem das suas vantagens terrenas. Esplêndidos exemplos deste gênero dados por tantos soldados de Cristo mais depressa abalarão e arrastarão as almas, do que a multiplicidade das palavras e do que a sutileza das discussões; e ver-se-ão, sem dúvida, multidões de homens, calcando aos pés o respeito humano, desprendendo-se de todo preconceito e de toda hesitação, aderir a Cristo e promover, por seu turno, o conhecimento e o amor de Cristo, penhor da verdadeira e sólida felicidade.

b) Pelo fervor da vida cristã.

25. Certamente, no dia em que, em cada cidade, em cada aldeia, a lei do Senhor for cuidadosamente guardada, as coisas santas forem cercadas de respeito, os sacramentos freqüentados, em suma, tudo o que constitui a vida cristã for reposto em honra, nada mais faltará, Veneráveis Irmãos, para que Nós contemplemos a restauração de todas as coisas em Cristo. E não se creia que tudo isso se refere somente à aquisição dos bens eternos; os interêsses temporais e a prosperidade pública também se ressentirão mui felizmente disso. Porquanto, uma vez obtidos esses resultados, os nobres e os ricos saberão ser justos e caridosos para com os pequenos, e estes suportarão na paz e na paciência as privações da sua pouca afortunada condição; os cidadãos obedecerão não mais ao arbítrio, porém às leis; todos considerarão como um dever o respeito e o amor para com os que governam, e cujo poder só vem de Deus (Rom 13,1).

A Igreja deve ser livre

26. Há mais. Assim sendo, a todos será manifesto que a Igreja, tal como foi instituída por Jesus Cristo, deve gozar de plena e inteira liberdade, e não ser submetida a nenhuma dominação humana; e que Nós mesmos, reivindicando essa liberdade, não somente salvaguardamos os direitos sagrados da religião, mas provemos também ao bem comum e à segurança dos povos: a piedade é útil a tudo (I Tim 4,8), e, onde quer que ela reine, o povo está verdadeiramente assente na plenitude da paz (Is 32,18).

Conclusão

27. Que Deus, rico em misericórdia (Ef 2,4), apresse, na sua bondade, essa renovação do gênero humano em Jesus Cristo, visto não ser isso obra nem daquele que quer, nem daquele que corre, mas do Deus das misericórdias (Rom 9,16). E nós todos, Veneráveis Irmãos, peçamos-lhe esta graça em espírito de humildade (Dan 3,39), por uma oração instante e contínua, apoiada nos méritos de Jesus Cristo. Recorramos também à intercessão poderosíssima da divina Mãe. E, para mais largamente obtê-la, tomando ensejo deste dia em que vos dirigimos estas Letras, e que foi instituído para solenizar O santo Rosário, confirmamos todas as ordenações pelas quais o Nosso predecessor consagrou o mês de outubro à augusta Virgem, e prescreveu em todas as igrejas a recitação pública do Rosário. Exortamos-vos, além disso, a tomardes também por intercessores o puríssimo Esposo de Maria, padroeiro da Igreja Católica, e os príncipes dos apóstolos, São Pedro e São Paulo.

28. Para que todas estas coisas se realizem segundo os Nossos desejos, e para que todos os vossos trabalhos sejam coroados de êxito, Nós imploramos sobre vós, em grande abundância, os dons da graça divina. E, como testemunho da terna caridade em que voz abraçamos, a vós e a todos os fiéis pela Divina Providência confiados aos vossos cuidados, Nós vos concedemos em Deus, com abundância de coração, Veneráveis Irmãos, bem como ao vosso clero e ao vosso povo, a Benção Apostólica.

Dado em Roma, junto de São Pedro, a 4 de outubro do ano de 1903, primeiro do Nosso Pontificado.

PIO X, PAPA.