Apresentamos um Comentário do Padre Peter R. Scott – FSSPX sobre o Naturalismo da Carta Apostólica Rosarium Virginis Mariae de João Paulo II, publicada em 16 de outubro de 2002.

Fonte: SSPX Asia

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Naturalismo e o Rosário

Não deve existir nada que possa alegrar tanto o coração de um católico tradicional como uma carta apostólica de um papa sobre o Rosário. O que poderia ser mais propício para a renovação da devoção à Nossa Senhora? O que de mais poderoso poderia superar a impiedade dos nossos tempos? O que, em última análise, poderia estar mais de acordo com os pedidos de Nossa Senhora de Fátima sobre a consagração e o triunfo do Imaculado Coração? O que de fato poderia ser mais efetivo como resposta ao ecumenismo, à liberdade religiosa e aos outros erros do Concílio Vaticano II, incompatíveis como são com a verdadeira devoção à Nossa Senhora?

Entretanto, nosso entusiasmo inicial acerca de um pronunciamento papal sobre o Rosário se esvaece tão logo estudamos a carta e percebemos que ela é uma tentativa velada de promover o naturalismo da revolução pós-conciliar, e isso vem disfarçado no tratamento dado à mais tradicional devoção que os católicos conhecem. Como isso poderia ser possível? Como poderia um papa errar recomendando o Rosário? Como poderia Nossa Senhora abandonar aqueles que continuam a recitar suas Ave-Maria? Como poderia um católico criticar um papa que diz que o Rosário é “sua oração predileta”, “Oração maravilhosa! Maravilhosa na simplicidade e na profundidade” (§2)?

A resposta torna-se clara através da análise daquilo que o papa diz e daquilo que ele NÃO diz, e isso comparado às várias encíclicas do Papa Leão XIII sobre o Rosário. Como João Paulo II evocou e louvou a primeira encíclica de Leão XIII sobre o Rosário de 1 de setembro de 1883, a qual admitiu que seu predecessor indicou o Rosário “como instrumento espiritual eficaz contra os males da sociedade” (§2), conclui-se que ele está evidentemente ciente dos ensinamentos do seu predecessor. Consequentemente, qualquer persistente omissão em reiterar o mesmo ensinamento deve ser considerada um ato deliberado que demonstra com exatidão as intenções de João Paulo II a respeito do Rosário e de Nossa Senhora.

O propósito da Carta Apostólica

É verdade que o Papa propõe essa carta como uma resposta à debilitação de valor que o Rosário sofre no mundo moderno (§ 4), pois o mundo moderno avilta o Rosário ao considerá-lo oposto à liturgia e não-ecumênico. Entretanto, um olhar passageiro na carta basta para demonstrar que há uma outra razão mais profunda para sua existência — e consequentemente uma razão mais profunda para a recitação do próprio Rosário. A carta é para ser, conforme se explica (§3), um complemento mariano à Carta Apostólica de 2001 sobre o novo milênio (Novo Millennio Ineunte); e isso significa que é para ser um complemento do novo espírito de compreensão, diálogo, entendimento e paz que se introduziu junto com o advento do novo milênio. Outra evidência disso está quando se apresenta o documento como uma celebração do 40º aniversário de abertura da “grande graça” do Vaticano II em 11 de outubro de 1962.

Assim como o próprio Vaticano II, esse documento tem o propósito de mostrar como, através do Rosário, a Igreja pode viver sua unidade com o mundo e reconhecer os valores positivos dele. Com efeito, não há nesse documento qualquer menção do lamentável estado espiritual do mundo e de maneira alguma essa carta tem intenção de responder ao mal, à decadência e à escassez de espiritualidade do nosso tempo. Nesse ponto, a carta contrasta diretamente com as encíclicas anuais do Papa Leão XIII sobre o Rosário, pois todas elas insistem na necessidade do Rosário em vista das calamidades que assolam o mundo, em particular as calamidades espirituais que são os ataques contra a Igreja, a perda da Fé, além da impiedade e da imoralidade na vida pública. Para João Paulo II é efetivamente o contrário: a carta não foi escrita por causa do óbvio abandono moderno da espiritualidade, mas sim como uma resposta ao surgimento de “uma nova exigência de espiritualidade, solicitada inclusive pela influência de outras religiões” (§5). Essa carta considera a si mesma e ao próprio Rosário como uma resposta positiva ao pluralismo religioso moderno, e de maneira alguma ela se apresenta como uma resposta ao mal, ou uma defesa da Igreja contra a falsidade herética ou contra a imoralidade.

Algumas citações do Papa Leão XIII ilustram o quão radicalmente oposta essa visão é do ensino tradicional da Igreja. Com efeito, Leão XIII afirma que escreveu a Carta Encíclica Supremi apostolatus officio impelido pelo dever de proteger a Igreja — um dever tão mais urgente conforme a Igreja sofre maiores calamidades —, pois é dessas calamidades que surge a necessidade de existir um remédio poderoso: “Para este fim, nada consideramos mais eficaz e mais poderoso do que tornar-nos propícia, pela devoção e pela piedade, a grande Mãe de Deus, a Virgem Maria. De fato, mediadora, junto a Deus, da nossa paz, e dispensadora das graças celestes, ela está sentada no Céu no mais alto trono de poder e de glória, para conceder o auxílio do seu patrocínio aos homens, que, entre tantas penas e tantas lutas, fadigosamente caminham para a eterna pátria”. Invocando as vitórias do Rosário contra os hereges albigenses, turcos e muçulmanos, Leão XIII assinala: “Mas esta ardente e confiante piedade para com a augusta Rainha do Céu foi posta em mais clara luz quando a violência dos erros largamente difundidos, ou a transbordante corrupção dos costumes, ou o assalto de inimigos poderosos, pareceram pôr em perigo a Igreja militante de Deus”. Ademais, após falar do exemplo de São Domingos, e assinalar que estamos de igual maneira necessitados da ajuda divina, ele afirmou: “Iluminado do alto, ele viu claramente que para os males do seu tempo não havia remédio mais eficaz do que reconduzir os homens a Cristo, que é “caminho, verdade e vida”, mediante a freqüente meditação da Redenção por Ele operada; e interpor junto a Deus a intercessão dessa Virgem a quem foi concedido “aniquilar todas as heresias”. Aqui vemos razões católicas, razões sobrenaturais e razões de fé para a promoção do Santo Rosário.

O erro cristocêntrico e evangélico

Desde o começo da sua carta, João Paulo II descreve as duas características da “Oração evangélica” do Rosário, ou seja, que ela é cristológica e evangélica (ver §1, 2 e 18). Com efeito, toda essa discussão sobre o Rosário tem como fim trazer Cristo à tona: “para dele extrair algumas dimensões do Rosário que definem melhor o seu carácter próprio de contemplação cristológica” (§12). Num primeiro momento pode haver o ensejo de acreditar que isso é perfeitamente ortodoxo. Porquanto, claramente não pode haver nada em Maria que seja oposto a Cristo, nem pode haver qualquer coisa nela que não seja realmente cristológico ou que não leve ao seu divino Filho. Da mesma forma, não pode haver nada nela que não esteja em harmonia com o Evangelho, cujo espírito Maria entendeu mais do que qualquer um.

Entretanto, a deliberada redução da devoção mariana à essas duas considerações (cristológica e evangélica) tem como fim eliminar de maneira consistente da devoção mariana tudo aquilo que seja mariano e especificamente católico. Mesmo porque, considerar somente e obsessivamente em Maria apenas o aspecto de encaminhamento para Cristo é, em última análise, tirar dela todas suas virtudes, prerrogativas e honra, e deixar praticamente nada dela própria que possa ser encaminhado para Cristo. Além disso, limitar o mistério do Rosário às afirmações contidas no Evangelho é eliminar completamente o papel da Tradição na transmissão da Fé Católica e da piedade. Exclui-se a Tradição apostólica que nos ensina as grandezas, virtudes e prerrogativas de Nossa Senhora e exclui-se também a Tradição eclesiástica viva da Igreja, da qual antes de tudo nos transmitiu o Rosário, e que tão claramente demonstra sua eficácia e poder. Não obstante esses tesouros da Tradição, a carta apostólica deliberadamente limita ao Evangelho o mistério do Rosário.

O único papel de Maria descrito nessa carta é contemplar a face de Cristo (cf. §1 e 10), e a escola de Maria, na qual desejamos aprender, existe apenas na medida em que ela nos mostra a beleza da contemplação (cf. §1 e 12). Essa carta não atribui a Maria qualquer dignidade especial, nem direitos, nem prerrogativas, nem virtudes, nem poder ou autoridade própria; com efeito, nada nessa carta manifesta o fato de que ela é a Rainha do Céu e da Terra. A única referência ao seu poder é a relutante admissão do seu poder de suplicação (§16), e isso é apenas uma sombra da autoridade e grandeza da Santíssima Virgem se comparado ao que foi descrito pelos papas pré-conciliares. O resultado final é reduzir Nossa Senhora à sua contemplação de Cristo, uma visão débil que é completamente diferente daquela da mulher que esmaga todas heresias sob seus pés. A confiança total em Nossa Senhora não é mais possível sob tal óptica, dado que toda atenção está agora direcionada à Cristo.

Atitude totalmente diferente é a de São Luís Maria Grignon de Montfort, que entendeu melhor que ninguém como tudo em Maria é encaminhado ao seu Divino Filho e Sabedoria Eterna, mas não obstante, assim como São Bernardo, ele jamais cessava de louvar Nossa Senhora, e continuamente exaltava as virtudes da Fé, humildade, mortificação e caridade da Virgem. O “cristocentrismo” dele não afastou Nossa Senhora para fora do destaque. Ao contrário: ele disse que quanto mais ela é honrada, mais Cristo é honrado. Numa de suas várias afirmações no Tratado da Verdadeira Devoção diz: “Deus quer, finalmente, que sua Mãe Santíssima seja agora mais conhecida, mais amada, mais honrada, como jamais o foi”.

É verdade que a Carta Apostólica menciona a consagração a Jesus por meio de Maria conforme o método de São Luís Maria Grignon de Montfort, e cita do Tratado que quanto mais uma alma é consagrada à Maria, mais ela será consagrada a Jesus Cristo (§15). Entretanto, isso é claramente um palavreado se considerarmos o fato de que na carta não se atribui à Nossa Senhora qualquer papel, função, poder, virtude, honra ou graça própria, mas somente a simples contemplação. Sob o pressuposto (ademais perfeitamente verdadeiro) de que tudo em Nossa Senhora é subordinado a Cristo, tudo que diz respeito à ela foi silenciado. Consequentemente, nessa carta não sobra efetivamente nada em Nossa Senhora que nos leve ou atraia a Cristo senão seu exemplo de contemplação.

É por essa razão que o Papa prontamente responde à acusação de que o Rosário não é ecumênico. Mas ele não responde da maneira que deveria se imaginar, que seria admitindo que de fato o Rosário não é ecumênico, pois nele estão contidos todos ensinamentos e práticas que os protestantes se opõem mais implacavelmente. Muito pelo contrário, ele afirma que, entendendo no sentido cristológico ao qual ele fala tão frequentemente, o Rosário pode ser revitalizado de modo a tronar-se aceitável aos acatólicos: “Se adequadamente compreendido, o Rosário é certamente uma ajuda, não um obstáculo, para o ecumenismo!” (§4). Afirmação assaz espantosa que revela que a primeiríssima intenção dele é empreender uma transformação radical no Rosário e depois remover dele tudo que seja especificamente mariano e transmitido pela tradição eclesiástica — as duas coisas que os protestantes detestam fervorosamente.

São Luís Maria Grignon de Montfort faz uma afirmação muito pertinente em seu Tratado: “O sinal mais infalível e indubitável para distinguir um herege, um cismático, um réprobo, de um predestinado, é que o herege e o réprobo ostentam desprezo e indiferença pela Santíssima Virgem e buscam por suas palavras e exemplos, abertamente e às escondidas, às vezes sob belos pretextos, diminuir e amesquinhar o culto e o amor a Maria”. A carta apostólica certamente não trata Nossa Senhora com desprezo e indiferença, todavia ela faz o que está ao seu alcance (não de maneira franca, mas sorrateira) para levar toda veneração e amor para longe da Santíssima Virgem Maria e para mais perto do seu Filho; e isso sob os especiosos pretextos da cristologia e de estar seguindo o Evangelho.

O resultado final da carta sobre o Rosário será a indiferença à Nossa Senhora e eventualmente ao próprio Rosário, pois a carta rejeita efetivamente tanto a Tradição apostólica (ou seja, é somente Escritura ou sola scriptura) como a tradição eclesiástica (ou seja, especificamente a devoção mariana).

Naturalismo, o defeito primordial da carta

Há um espírito que não se menciona explicitamente na carta, mas toda ela é permeada por ele: é o naturalismo. Embora lá se diga que o Rosário é uma “contemplação salutar” (§13), não há qualquer menção sobre como ele ajuda na salvação, isto é, como ele pode dar a graça divina, inspirar mortificação e sacrifício, elevar as almas à verdade sobrenatural e eterna e ao amor sobrenatural a Deus. Eliminar essa clara distinção entre as ordens natural e sobrenatural — e eliminar a menção de qualquer coisa especificamente sobrenatural — é o erro modernista de Henri de Lubac que o Papa Pio XII condenou em sua encíclica Humani generis.

A evidência de que o erro naturalista permeia a carta Rosarium Virgnis Mariae reside no fato de que toda afirmação lá feita acerca de meditação e Rosário poderiam ser tanto interpretada facilmente em termos de meditação natural (isto é, de uma experiência psicológica) quanto em termos de meditação sobrenatural. Citemos alguns exemplos disso a seguir.

Afirma-se que “O contemplar de Maria é, antes de mais, um recordar” (§13); e que o “Rosário” de Maria consistia nas lembranças que tinha de seu Filho (§11); e que essa “oração marcadamente contemplativa” “por sua natureza (…) requer um ritmo tranquilo e uma certa demora a pensar” (§12).

A meditação sobrenatural vai muito além da pura lembrança, pois ela preenche a alma com a convicção e o desejo de amar e se sacrificar pelo amado. Ademais, meditação sobrenatural não é produto de um mantra ou produto da maneira em que alguma oração particular é dita — como são as meditações naturais da yoga e de religiões orientais.

Afirma-se logo adiante que “O Rosário é também um itinerário de anúncio e aprofundamento, no qual o mistério de Cristo é continuamente oferecido aos diversos níveis da experiência cristã” (§17).

Essa noção de diversificação de níveis de experiência é certamente uma expressão da noção modernista de imanência condenada por São Pio X, ou seja, trata-se da noção de que a religião e o conhecimento da verdade religiosa são uma experiência interior e subjetiva que pode existir em vários níveis. Para o católico [verdadeiro], porém, há simplesmente a verdade objetiva, e a meditação permite que disponhamos nossas almas, nossos atos diários e nossas vidas à essa verdade objetiva.

Outras afirmações heterodoxas e aparentemente confusas têm uma explicação modernista, como no caso dos eventos do Rosário — reduzidos evidentemente aos eventos relatados na Bíblia — como “o ‘hoje’ da salvação” (§13), que é (na concepção da carta) uma re-presentação da mesma maneira que o é a Missa. O símbolo lembrado é simplesmente a realidade de hoje, pois a realidade é, doravante, uma coisa subjetiva ali. Da mesma forma, a estranha expressão “[Maria é] o perfeito ícone da maternidade da Igreja”, significando que ela é o símbolo ou imagem pelo qual a maternidade da Igreja nos é apresentada subjetivamente. Entretanto, abordagens sobre como Maria participa objetivamente na obra da nossa redenção, e como ela é verdadeiramente a Mãe da Divina Graça e medianeira de todas as graças estão totalmente fora da perspectiva subjetivista e naturalista do autor dessa carta apostólica.

O humanismo é também uma das principais manifestações desse naturalismo. Ele está especialmente manifesto no parágrafo 25, onde se aborda a “implicação antropológica do Rosário”. Nisso o Papa quer dizer que o Rosário proporciona um grande entendimento da natureza do homem — e esse é também o propósito da antropologia. E ele afirma isso explicitamente ao dizer que o Rosário “marca o ritmo da vida humana” revelando em Cristo “a verdade sobre o homem”, e assim “o mistério do homem (…) esclarece verdadeiramente” (§25). A citação do famoso parágrafo 22 da constituição Gaudium et spes, sobre a Igreja no mundo moderno, escrita por Paulo VI, nos dá a chave para interpretar essa passagem. Eis o trecho da constituição do Concílio Vaticano II ao qual a carta alude: “Na realidade, o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente. (…) Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo (…) Porque, pela sua encarnação, Ele, o Filho de Deus, uniu-se de certo modo a cada homem. (…) Tal é, e tão grande, o mistério do homem”.

Esse texto verdadeiramente horripilante é a base da tese de Redenção Universal do Papa, tão bem demonstrada pelo Padre Dormann na série de livros sobre a jornada teológica do Papa João Paulo II, desde o Concílio Vaticano II até ao encontro inter-religioso de Assis. Ao unir a natureza humana a Si mesmo, Cristo teria santificado toda natureza humana, ou seja, todo homem (saiba ele ou não, queira ele ou não). Cristo eleva a natureza humana a Si mesmo, e então segue-se nessa tese que o homem só pode conhecer sua natureza humana (a manifestação do amor do Pai) através de Cristo. A distinção entre natureza e graça é totalmente obscurecida, e é por isso que aí todos os homens podem ser salvos. Sendo assim, toda a questão da graça é irrelevante em tal perspectiva. E é essa perspectiva que permite o Papa concluir: “Pode-se dizer, portanto, que cada mistério do Rosário, bem meditado, ilumina o mistério do homem” (§25). Nessa perspectiva, Cristo não eleva a natureza pela graça, Ele simplesmente manifesta essa natureza ao homem ao unir-se a ela. Essa é a razão pela qual as meditações sobre a vida de Cristo marcam “o ritmo da vida humana”, ou seja, como elas nos ajudam a entender o significado e a natureza da vida humana (e não mais a participação na vida divina que Cristo concedeu a nós). A distorção do ensinamento católico é sutil mas radical, e destrói toda a realidade da vida interior da graça.

Os três parágrafos seguintes da Carta Apostólica descrevem as consequências de tão profundo naturalismo. A primeira consequência é que se passa a considerar o Rosário como um procedimento ou processo psicológico, isto é, uma técnica natural que entra em contato com a “experiência universal do amor humano” (§26). Observe a universalidade. Ela indica que está se falando sobre o amor natural que é comum a todo homem. É por essa razão que o Papa não hesita em afirmar que “para compreender o Rosário, é preciso entrar na dinâmica psicológica típica do amor” (§26). Isso significa que se o Rosário não for entendido como um processo da mente humana ou psique, então ele não foi entendido de maneira alguma. Ademais, isso também significa que todos aqueles que consideram o Rosário absolutamente sobrenatural (pelas graças que dele se obtém tanto para nós quanto para o próximo) não conseguem entendê-lo! Uma pena para São Domingos e São Pio V.

A segunda consequência é que o Rosário passa a ser apenas um dentre muitos métodos de meditação, um método não diferente daqueles que usam o ritmo da respiração para estimular a meditação (§27); um método que, como a liturgia, “normalmente passa pelo envolvimento total da pessoa, na sua complexa realidade psico-física e relacional” (§27). Novamente encontramos outra expressão completamente naturalista, pois o Rosário tornou-se aí um método que pode ser reduzido à experiência psicológica da mente, à experiência física do corpo, e à experiência das relações com outras pessoas. Assim, o papel de Deus fica relegado à ordem natural, pois enquanto autor da natureza, é por Ele que somos levados às experiências humanas.

Entretanto, a mais chocante das consequências é a terceira, pois ela não apenas afirma que o Rosário “trata-se simplesmente de um método para contemplar”, mas que o Rosário é apenas mais um método de meditação, assim como aqueles outros das religiões não-cristãs; e assim como esses outros métodos, ajuda a pessoa a atingir um alto nível de concentração espiritual por meio do uso de meras técnicas naturais. Permita-me citar a passagem. Após afirmar novamente que a carta é uma resposta à “renovada exigência de meditação” feita nos nossos dias pelas religiões não-cristãs, ele afirma que “Apesar de (as formas não cristãs de oração) possuírem elementos positivos (outra falsidade do Vaticano II) e às vezes compatíveis com a experiência cristã, todavia escondem frequentemente um fundo ideológico inaceitável. Em tais experiências, é muito comum aparecer uma metodologia que, tendo por objectivo uma alta concentração espiritual, recorre a técnicas repetitivas e simbólicas de carácter psico-físico. O Rosário coloca-se neste quadro universal da fenomenologia religiosa…” (§28; ênfase nossa).

O fundo ideológico da experiência religiosa não-cristã pode ser inaceitável, mas a prática dela certamente não é inaceitável para o Papa. Sendo assim, o Rosário passa a ser apenas um desses fenômenos religiosos, pois ele foi adaptado aos católicos por ter premissas católicas, embora não seja essencialmente ou fundamentalmente diferente das experiências religiosas místico-meditativas dos pagãos orientais. Nesse parágrafo reside todo o empreendimento de destruição do Rosário como fonte de graça e bênçãos de Deus. Todas as boas coisas ditas sobre Nossa Senhora e o Rosário nessa carta são destruídas por esse parágrafo que reduz Nossa Senhora e o Rosário ao “quadro universal da fenomenologia religiosa”. Esse é o completo indiferentismo e relativismo em relação à religião, e uma implícita negação da doutrina católica que enuncia que “Fora da Igreja não há salvação”.

O Papa segue e afirma que, como o Rosário é apenas mais um método, não há razão para que ele não possa ser de fato “melhorado” ou mudado, e é precisamente o que ele pretende fazer na segunda parte da carta apostólica. Os novos “mistérios luminosos” são uma parte do melhoramento do método. A segunda conclusão é que as contas do Rosário são úteis na medida em que elas nos levam a tal “método de contemplação”, e que se a pessoa recitar o Rosário sem essa experiência, então as contas devem acabar por serem vistas “quase como um amuleto ou objecto mágico”. Isso relega a recitação do Rosário feita por um homem comum a um nível de superstição inútil, além de desvalorizar o proveito espiritual que é obtido do uso piedoso dos artigos religiosos abençoados ou sacramentais. Novamente, em nome da promoção do Rosário, tudo é feito para destruir o Rosário tal como os católicos sempre o conheceram.

Os “melhoramentos” do Rosário

A mais óbvia das melhoras a ser feita no Rosário é a adição de uma nova série de cinco dezenas para ser recitada após os Mistérios Gozosos (§19 e §21). A escolha desses novos mistérios, que o Papa chama de “momentos luminosos”, não é de maneira alguma por acaso. Há um esforço deliberado para evitar os dois principais fatores que contribuíram para que São Domingos determinasse as 15 dezenas as quais estamos acostumados. Primeiro, os mistérios foram dados a ele pela Tradição, e em segundo esses mistérios são eventos objetivos da nossa Redenção. Os 15 mistérios do Rosário como o conhecemos são eventos que aconteceram e que constituíram etapas importantes no cumprimento da Redenção, seja pela Encarnação (no caso dos Mistérios Gozosos), seja pelo mérito e reparação (como nos Mistérios Dolorosos), seja pela causalidade exemplar (como nos Mistérios Gloriosos). Os três conjuntos de mistérios são necessários a nossa redenção, e não poderia ser de outra maneira. É verdadeiro que muitos dos mistérios estão na Sagrada Escritura, todavia, não é por essa razão que eles foram incluídos no Rosário. Eles foram incluídos porque a Tradição católica vivente transmitiu até São Domingos como os mistérios da nossa redenção precisam ser meditados através do Rosário. Por conseguinte, é completamente falso chamar o Rosário de “compêndio do Evangelho” (§19) como ele é chamado na Carta Apostólica. Da mesma maneira, não está de acordo com a Tradição católica — portanto não é católico — querer adicionar cinco mistérios “para que o Rosário possa considerar-se mais plenamente ‘compêndio do Evangelho’” (§19). Ademais, não é surpreendente notar que os mistérios de luz propostos não são eventos da nossa Redenção. São apenas belos episódios do Evangelho e palavras para nos encorajar. Consequentemente, a inserção desses trechos no Rosário obscurece a realidade e a importância da redenção objetiva que o Rosário tradicional representa. Além disso, os novos mistérios são histórias do Evangelho que a Tradição nunca ligou de qualquer maneira ao Rosário. Para acrescentar mais elementos antagônicos ao verdadeiro aspecto mariano da devoção ao Santo Rosário, apenas um desses mistérios menciona a presença e o papel de Nossa Senhora — e apenas de passagem — na ocasião da bodas de Caná. A Santíssima Mãe não está de maneira alguma presente nos demais mistérios. É o caso de se perguntar o que eles estão fazendo no Rosário além de levar sub-repticiamente a atenção para longe de Nossa Senhora.

Citemos esses cinco “momentos” “luminosos” e “significantes” (§21): O batismo de Cristo no Jordão, sua auto-revelação nas bodas de Caná, seu anúncio do Reino de Deus com o convite à conversão, sua Transfiguração e, enfim, a instituição da Eucaristia. Você pode legitimamente se perguntar por que esses episódios do Evangelho e o quê esses episódios têm em comum para merecer o título de “mistérios de luz”. Evidentemente não têm nada a ver com Nossa Senhora, ou mesmo com a redenção objetiva.

Entretanto, há de fato um fator em comum, que é o fato de que todos os cinco “momentos luminosos” expressam de uma maneira ou outra a nova teologia do Mistério Pascal, que é um conceito totalmente novo de Redenção. Essa é a teoria que minimiza a importância do sacrifício da Cruz na nossa Redenção e que está por trás da Novus Ordo Missae, onde o sacrifício propiciatório foi efetivamente eliminado. De acordo com essa teoria, defendida amplamente pelos modernistas, a Redenção do homem é uma obra de puro amor ou misericórdia. A manifestação do amor de Deus é tão grande que não há necessidade de nada mais, nem sequer o pagamento de uma dívida pelo pecado. Por assim dizer, querer pagar uma dívida seria limitar o infinito amor de Deus. Por conseguinte, a redenção é qualquer coisa que manifeste o amor de Deus. Os “mistérios de luz” estão nessa categoria, pois vistos assim eles são manifestações da misericórdia e da glória de Jesus, e, com efeito, são manifestações mais poderosas que o Nascimento e morte na Cruz. De acordo com essa nova teologia não há necessidade da satisfação (i.e. reparar as ofensas) dos pecados do homem, nem da Cruz, nem do sacrifício, nem da penitência e nem da abnegação, exceto num sentido secundário, na medida em que eles forem manifestações da misericórdia de Deus.

As razões pelas quais esses cinco foram escolhidos torna-se, nessa perspectiva, evidente: são todas manifestações. No primeiro a missão é manifestada pelo Pai e pelo Espírito. No segundo mistério (de Caná) há uma manifestação de fé, pois Cristo “abre à fé o coração dos discípulos graças à intervenção de Maria, a primeira entre os crentes. Assim, até mesmo Maria é evocada para o propósito do ecumenismo, pois de acordo com a teoria do Mistério Pascal, todos os crentes [em qualquer coisa] são manifestação da misericórdia divina, independente das suas crenças particulares. O terceiro mistério é a manifestação do Reino de Deus, e o quarto é a manifestação da “Glória da Divindade” (por que não dizer precisamente o que é? No caso não se diz a divindade de Cristo). No quinto mistério a instituição da Eucaristia é explicitamente descrita como a “expressão sacramental do mistério pascal”. Observe que aqui não se menciona qualquer um dos sete sacramentos que renova o sacrifício do Calvário de maneira incruenta, mas apenas de maneira generalizada e imprecisa menciona-se uma manifestação ou expressão do mistério oculto do amor de Deus — que é o que o Papa quer dizer quando comenta que nessa refeição Jesus está “testemunhando ‘até ao extremo’ o seu amor pela humanidade” (§21), citando deliberadamente e erroneamente São João (13, 1), pois o apóstolo afirma explicitamente que são “os seus” que Jesus ama até o fim, e não toda humanidade ou todo o mundo. O Papa resume esse novo conceito de Mistério Pascal (no sentido de que os mistérios são uma manifestação separada de qualquer ato de Redenção) quando diz que “cada um destes mistérios é revelação do Reino divino já personificado no mesmo Jesus”. É por isso que todos os crentes estão salvos, pois todos eles crêem de alguma maneira na manifestação ou revelação do amor divino, e que isso é tudo o que importa.

Consequentemente, não pode haver qualquer dúvida que há razões não declaradas e profundamente heterodoxas que representam a verdadeira razão da inserção desses “momentos luminosos” — algo absolutamente impensável até antes do Vaticano II e que assim continua para aqueles que acreditam na tradicional teologia da Redenção.

Foi o Papa Leão XIII, que em diferentes encíclicas sobre o Rosário, explicou efetivamente porque os mistérios do Rosário não são opcionais ou mutáveis. A ordem e o número do Rosário são para que se proponha de maneira perfeita a nós a “obra inenarrável da Redenção humana”, conforme explica Leão XIII em Octobri mense de 22 de setembro de 1891. O Rosário “recorda, num feliz enredo, os grandes mistérios de Jesus e de Maria: as suas alegrias, as suas dores e os seus triunfos. Se os fiéis meditarem e contemplarem devotamente, na ordem, devida, estes augustos mistérios, haurirão deles um admirável auxílio, quer em alimentar a sua fé e em preservá-la da ignorância e do contágio dos erros, quer em elevar e fortalecer o vigor do seu espírito (…) e nunca se cansarão de admirar a obra inenarrável da Redenção humana, levada a efeito a tão caro preço e com uma sucessão de tão grandes acontecimentos”. Uma citação tão explícita e tão contrária à [nova] teoria do Mistério Pascal não poderia ser encontrada.

Leão XIII reiterou as mesmas idéias no ano seguinte em sua encíclica Magnae Dei matris de 8 de setembro de 1891, onde ele dá o nome de “principais mistérios da nossa religião” à obra da Redenção: “Com efeito, com a sua maravilhosa e eficaz oração, ordenadamente repetida, ele [O Rosário] nos leva à recordação e à contemplação dos principais mistérios da nossa religião: em primeiro lugar, daqueles pelos quais “o Verbo se fez carne” e Maria, Virgem intacta e Mãe, lhe prestou com santa alegria os seus maternais ofícios. Vêm depois as amarguras, os tormentos, a morte de Cristo, preço da salvação do gênero humano. Finalmente, são os mistérios gloriosos (…) E esta a ordenada sucessão de inefáveis mistérios no Rosário é freqüente e insistentemente evocada à memória dos fiéis, e como que desenrolada diante dos seus olhos; de modo que aqueles que rezam bem o Rosário têm a alma inundada por ele de uma doçura sempre nova, experimentam a mesma impressão e emoção que experimentariam se ouvissem a própria voz de sua dulcíssima Mãe, no ato de lhes explicar esses mistérios e de lhes dirigir salutares exortações”.

Que poderosa a autoridade a qual Leão XIII fala a verdade, e que convicção quanto à integralidade e à ordem dos mistérios do Rosário tal como estão. Por conseguinte, exorto o leitor a recusar a novidade dos mistérios luminosos e manter-se firme nos mistérios que tão perfeitamente descrevem o mistério da nossa Redenção — e consequentemente são fonte de ilimitadas graças para nossas almas.

Muitas outras “melhorias” são propostas na carta, e pelos mesmos motivos que já vimos. Por exemplo, a modificação proposta na própria Ave Maria (§33). Como a Ave Maria é uma oração “cristológica”, o auge dela não pode ser a pessoa à qual se dirige (Maria), mas o nome de Jesus. “O baricentro da Ave Maria, uma espécie de charneira entre a primeira parte e a segunda, é o nome de Jesus” (§33). Isso, ademais, não é cristológico o bastante para o Papa. Ele quer enfatizar muito mais o nome de Jesus e, desta maneira, rebaixar a importância de Nossa Senhora. Ele propõe que se faça isso adicionando uma frase após o nome de Jesus, de maneira que essa frase se relacione à manifestação de Jesus no mistério em questão.

Observa-se aí que não há absolutamente qualquer menção à oração ensinada às crianças em Fátima — como se ela não tivesse importância e nem sequer merecesse menção. Não obstante, em todo lugar tornou-se costume recitar a após cada dezena essa oração profundamente sobrenatural: “Ó meu Jesus, perdoai-nos e livrai-nos do fogo do inferno; levai as almas todas para o Céu, e socorrei principalmente as que mais precisarem”. Entretanto o Papa encoraja o povo de Deus a criar suas próprias orações, que pode “gozar de uma legítima variedade na sua inspiração” (§35). Se assim for, o espírito sobrenatural, a constância e a inabalável solidez dessa imutável oração serão solapados.

Frutos do Rosário

Se for necessária uma última prova sobre todo esse espírito naturalista da carta apostólica, ele encontra-se na discussão sobre os frutos do Rosário. Há, antes de tudo, uma reinterpretação humanista das graças a serem recebidas pela meditação dos mistérios, especialmente nos mistérios dolorosos e gloriosos. Tradicionalmente, meditamos os mistérios dolorosos em reparação aos nossos pecados e aos pecados do mundo, para que assim cresçamos em contrição e, ao sermos purificados das desordens da nossa sensualidade e orgulho, possamos carregar nossa cruz. Todavia, de acordo com a Carta Apostólica de João Paulo II, os mistérios dolorosos são simplesmente “o ápice da revelação do amor e a fonte da nossa salvação” que revela “o mesmo sentido do homem” através da “força regeneradora” do “amor de Deus” (§22). Essa é uma consequência direta da nova teologia naturalista do Mistério Pascal, que diz que não há necessidade de penitência, sacrifício e satisfação dos pecados. O sofrimento humano de Cristo simplesmente nos dá um maior conhecimento da humanidade em comum (isto é, do próprio “sentido do homem”). Visto assim, esse humanismo é em si mesmo uma revelação do amor de Deus, pois Cristo é a melhor manifestação humana desse amor. Pode-se facilmente ver que nenhum fruto sobrenatural pode vir dessa nebulosa experiência, pois ela não nos atrai ao paraíso, nem nos inspira a desprezar as coisas da terra e abraçar nossa cruz.

A mesma coisa pode se dizer das graças que se obtêm dos mistérios gloriosos. Tradicionalmente, eles nos dão as virtudes teologais (Fé, Esperança e Caridade) e nos dão um fervente desejo pelo Paraíso, além da humilde devoção e confiança na Santíssima Virgem Maria. Já na Carta Apostólica é dito que nos mistérios gloriosos “o cristão descobre novamente as razões da própria fé” (§23) — algo que não faz sentido algum para aqueles que acreditam que a Fé é um dom gratuito de Deus aceito por causa da autoridade D’Ele e porque Ele não pode enganar nem ser enganado. Apenas uma fé [puramente] humana procuraria confirmações desse tipo. Ademais, o Papa João Paulo II resume os frutos dos mistérios gloriosos dizendo que eles “alimentam nos crentes a esperança da meta escatológica, para onde caminham como membros do Povo de Deus peregrino na história” (§23). Essa estranha expressão indica que o propósito desses mistérios é ajudar crentes de todos os tipos (pois a ambígua expressão “o povo de Deus” é deliberadamente estendida aos que não são católicos), e ajudá-los na “história” — ou seja, nesta terra — em que a própria Igreja é uma peregrina que não sabe para onde os tempos modernos e as mudanças a levam, embora Ela sempre tenha uma mente aberta. A escatologia é o estudo do destino final, mas aqui o termo “meta escatológica” é usado em sentido ambíguo, de modo que ele muito bem poderia se referir ao destino final do povo de Deus na busca da paz e justiça terrenas, assim como na busca de uma vida perene. Novamente a perspectiva naturalista torna a verdadeira graça ausente.

Os frutos do Rosário são expressamente discutidos no quadragésimo parágrafo da Carta Apostólica. Lá afirma-se que “o Rosário é, por natureza, uma oração orientada para a paz”, o que caracteriza uma expressão ambígua. Essa paz é a paz da reta espada que pode tanto ferir como defender ou é a paz do indiferentismo (chamada por Pio XII de “irenismo”, ou paz a qualquer custo)? A resposta encontra-se ao ler a respeito dos efeitos que João Paulo II afirma advirem dessa paz: “Como seria possível fixar nos mistérios gozosos (…) sem sentir o desejo de acolher, defender e promover a vida, preocupando-se com o sofrimento das crianças nas diversas partes do mundo? (…) sem se empenhar a testemunhar as suas “bem-aventuranças” (de Cristo) na vida diária? (…) sem sentir a necessidade de se fazer seu “cireneu” em cada irmão abatido pela dor ou esmagado pelo desespero (…) sem desejar tornar este mundo mais belo, mais justo, mais conforme ao desígnio de Deus?” (Supostamente, esta última parte do trecho é para ser o fruto dos mistérios gloriosos!). Está óbvio que a paz que se fala é a paz terrena, um mundo justo, e que ela nada tem a ver com a paz sobrenatural que serve de preparação para a eternidade. Esse naturalismo é também expresso pelo novo simbolismo que o Papa propõe para as contas do Rosário: “É bom alargar o significado simbólico do terço também à nossa relação recíproca, recordando através dele o vínculo de comunhão e fraternidade que a todos nos une em Cristo” (§36), e o fato de que as indulgências agora são alegadamente concedidas “para encorajar esta perspectiva eclesial do Rosário” (§37), e não mais para obter, antes de tudo, a remissão da punição temporal por conta do pecado — remissão essa que faz abrir as portas do paraíso.

Mas alguém pode dizer que nessa carta o papa recomenda o Rosário em família e repete o adágio “A família que reza unida, permanece unida” (§41). Estará segura essa pessoa de que isso não é liberalismo? Leia então quando o Papa fala dos frutos que garante a família que reza o Rosário: “os seus diversos membros (…) recuperam também a capacidade de se olharem sempre de novo olhos nos olhos para comunicarem, solidarizarem-se, perdoarem-se mutuamente, recomeçarem com um pacto de amor renovado pelo Espírito de Deus” (§41), assim como o “crescimento dos filhos” (§42) e para vencer “a distância cultural entre as gerações” (§42). Todas essas expressões poderiam ser facilmente usadas por acatólicos em suas experiências comunais de família. Não que em si essas coisas sejam más, mas estão num plano puramente natural. Assim, para fazer as crianças gostarem do Rosário, o Papa não nos propõe disciplina e mortificação, mas as novidades que servem de “atrativos simbólicos e práticos” (§42).

Quão diferente é a concepção de frutos do Rosário defendida pelo Papa Leão XII em sua encíclica Jucunda semper de 8 de setembro de 1894: “A virtude que o Rosário tem de inspirar a confiança em quem o reza, possui-a também em mover à piedade para conosco o coração da Virgem” (§10). Eis um fruto completamente sobrenatural: bênçãos do Céu por meio de Nossa Senhora. Leão XII também nos diz que podemos esperar ver dos nossos Rosários o duplo aspecto do fruto do Rosário tão comumente visto na história da Igreja: “a defesa da santa fé contra os nefastos ataques dos hereges, quer no repor em honra aquelas virtudes que haviam sido sufocadas pela corrupção do mundo. Experimentou-a por uma série ininterrupta de benefícios, privados e públicos, cuja lembrança por toda parte foi imortalizada até mesmo com insignes instituições e monumentos” (§1). Novamente, é a Fé sobrenatural e a virtude em oposição ao espírito do mundo.

Obrigação do Rosário

Como João Paulo II considera o Rosário apenas mais um método de oração, ele obviamente não pode torná-lo obrigatório. Com efeito, ele reconhece claramente que não tem intenção de impor qualquer coisa aos indivíduos ou igrejas particulares (§3). Qual então é a consequência prática dessa carta? Será o aumento da frequência na recitação do Rosário? Claramente não, e se a carta for de fato lida e entendida, ela diminuirá o que resta de fervor ao rosário na igreja pós-conciliar.

Quão diferente foi a conclusão dada pelo Papa Leão XIII no final da sua primeira encíclica sobre o Rosário, Supremi apostolatus officio em 1883: “Estabelecemos, pois, e ordenamos que, em todo o mundo católico, a solenidade de Nossa Senhora do Rosário seja este ano celebrada com particular devoção e com esplendor de culto”; e ele efetivamente tornou obrigatório que se recitasse todos os dias no mês de outubro cinco dezenas do Rosário e a Ladainha de Nossa Senhora antes que fosse exposto o Santíssimo Sacramento. Ele continua: “pelo zelo que tendes da honra de Maria e da salvação da sociedade humana, esforçai-vos por alimentar a devoção e por aumentar a confiança do povo para com a grande Virgem”.

Então não podemos deixar de concluir que a Carta Apostólica de João Paulo II foi promulgada mais para promover o ecumenismo, a solidariedade religiosa e comunal, o diálogo com os não-cristãos, a aceitação de métodos de meditação não-cristãos, e o novo conceito de Mistério Pascal, do que para verdadeiramente promover a recitação do Rosário tal como o conhecemos. O idealismo das meditações naturalistas, a introdução de novos mistérios luminosos que nada têm a ver com a Redenção, a confusão deliberada acarretada pelas mudanças propostas, e a recusa de qualquer medida concreta para de fato promover a recitação do Rosário, garantiram que essa carta se torne um triste — porém importante — passo na direção da diminuição da devoção mariana e do Rosário na igreja pós-conciliar.