retirado de Fideliter, n° 194, Mar-Abr 2010, APUD Semper – revista da FSSPX de Portugal

Adaptado ao português do Brasil

concilio-nuvens

Não é uma agitação, mas um primeiro sair da linha.

As palavras são prudentes, mas as coisas são ditas.

Mesmo em Roma, começa-se a discutir a catolicidade do Concílio Vaticano II.

Côme Prévigny

No fim do mês de Janeiro, as grandes figuras liberais da era «wojtiliana», do Cardeal Martini a Dom Sorrentino, apadrinharam a criação de um novo sítio em Itália: Viva il Concilio! Aclamação para cantar as maravilhas de um «superdogma», como se fosse necessário serrar fileiras para conjurar uma inevitável ameaça: o Concílio Vaticano II, cuja aula ressoava com mil vozes há meio século, teria hoje a sua aura embaciada. Ao mesmo tempo, após três edições sucessivas na língua de Dante, um dos mais eminentes teólogos da Latrão, Dom Brunero Gherardini, publicava a edição francesa da sua última obra: Le concile oecuménique Vatican II, un débat à ouvrir.

A diligência de Dom Gherardini

Gherardini

Este professor toscano, originário de Prato, nem homem do poder nem prelado de corte, passou décadas formando padres na eclesiologia e no ecumenismo. Deão da Faculdade de Teologia da Universidade Pontifícia de Latrão, cônego da arquibasílica vaticana, tornou-se especialista reconhecido e consultado da reforma luterana, da eclesiologia e da mariologia. A obra que este herdeiro da escola clássica publica aos oitenta e cinco anos, poderia ser recebida como síntese das centenas de publicações que este eminente universitário romano, iniciado na teologia Tomista e nas definições tradicionais, editou no decurso da sua carreira eclesiástica. Tal não é o objetivo das suas duzentas e sessenta páginas. Estas surgem, no momento em que se iniciam as discussões doutrinais entre a Santa Sé e a Fraternidade São Pio X, como resposta ao famoso discurso de Bento XVI à Cúria, em 22 de Dezembro de 2005. O Papa, nesse verdadeiro programa de abertura, fazia da «hermenêutica da continuidade» o tema principal do seu pontificado. Tratava-se, para ele, de pôr fim à crise pós conciliar e de colocar o concílio no rasto da Tradição.

Dom Gherardini diz-se disposto a seguir essa tentativa. Aliás, dá a entender que é aquela que, pacientemente, aplicou no seu ensino, tentando ligar os textos conciliares ao Magistério anterior. Mas, sem a recusar, mostra que ela não vale por si só. Expõe as dúvidas que se acumularam durante a experiência do método e, na precisão das definições, sublinha a dissonância real de grande número de textos, desde Dignitatis Humanae até Lumen Gentium, em relação à Tradição. Afirma, depois de cinquenta anos de ensino: «Confesso que nunca cessei de me interrogar sobre o problema de saber se, efetivamente, a Tradição da Igreja foi, em tudo e para tudo, salvaguardada no último concílio e se, em consequência, a hermenêutica da continuidade evolutiva lhe possa ser verdadeiramente aplicada.»

Desde logo, a sua afirmação, de grande respeito e inegável deferência, não é elogio pomposo e afetado. Lança até um grito de alarme e conclui o seu livro por uma súplica ao Santo Padre, no quarto ano do seu pontificado: «Parece- me que, após meio século de tal linguagem, de incensamento grandioso, de celebrações intempestivas não solicitadas e que produzem o efeito contrário, é chegado, enfim, o momento de virar a página.»

Releitura do concílio

Antes de abordar, metodicamente, os textos conciliares que lhe parecem, de maneira emblemática, particularmente problemáticos, Dom Gherardini toma a precaução de esvaziar o assim designado caráter «definidor» do Vaticano II, que devia fazer dele um terceiro Testamento. O prelado lembra a necessidade de colocar o concílio no seu contexto e de atender à consideração das intenções que os Papas João XXIII e Paulo VI lhe tinham consignado: objetivo pastoral, que repelia qualquer desejo de proclamar definições de fé: «Quando um concílio apresenta, ele mesmo, o conteúdo e razão dos seus documentos sob a categoria de “pastoralidade”, autoqualificando-se como “pastoral”, exclui, por isso mesmo, qualquer intenção de definições. Em consequência, este concílio não pode pretender a qualidade de um concílio dogmático, e ninguém pode conferir-lha. E mesmo que, no seu conteúdo, faça certas referências aos dogmas do passado e desenvolva um discurso teológico. “Teológico” não é, necessariamente, sinônimo de “dogmático”.» De hoje em diante, não são apenas os membros da Fraternidade que avançam o argumento da pastoralidade, é um dos mais eminentes deões da faculdade romana.

Do mesmo modo, o professor de eclesiologia não quer opor em demasia concílio e pós concílio. Segundo ele, um alimenta o outro, pelas suas faltas, suas brechas, suas ambiguidades, pelo que estaria contrário ao Magistério anterior: «Se se falou de espírito conciliar, não foi por acaso. O concílio tinha-o difundido às mãos cheias, com a sua confiança no homem e no progresso; com a sua atenção à experimentação social, política e cultural […], com o seu convite ao diálogo e à colaboração, em todas as direções, a um mundo à medida do homem; com o seu irenismo aberto ao mundo e o seu sussurro de fronda; com o silêncio imposto a todas as aves de mau agouro.»

Desde logo, Dom Gherardini lança-se no estudo profundo dos célebres textos relativos à Liturgia (Sacrosanctum Concilium), à liberdade religiosa (Dignitatis Humanae), ao ecumenismo (Unitatis Redintegratio) e à definição da Igreja (Lumen Gentium). O deão não monta um processo. Insiste sobre o que considera como os contributos essenciais do Vaticano II e, até, sobre o que pensa serem os benefícios (?) de certas constituições, como Lumen Gentium. Releva, no entanto, o papel particularmente devastador de peritos, na primeira fila dos quais cita Karl Rahner, que levaram o que designa as «aspirações revolucionárias ao Vaticano II». A conclusão é clara: a Igreja não pode satisfazer-se com a flagrante contradição dos textos magistrais. O Papa deve programar colóquios e abrir um grande estudo sobre o concílio, a fim de haver dele uma leitura conforme à verdadeira noção de Tradição, que ele próprio [Papa] tem muito cuidado ao precisar referir-se à definição de São Vicente de Lérins.

Silêncio sobre a resistência existente

O livro é pequeno, mas as dezenas de páginas históricas e teológicas relativas ao concílio e ao pós concílio nunca falam do Coetus Internationalis Patrum ou da Fraternidade São Pio X. O nome de Dom Lefebvre não é citado uma única vez. Um espírito preocupado com a justiça poderia formalizar-se com tais ausências. De algum modo, o leitor poderia quase sentir reprovação, especialmente quando o autor alude ao aspecto polêmico de certas publicações do Courier de Rome, notoriamente conhecidas por serem mantidas por um eminente membro da obra de Ecône. Apesar disso, essa distância marca uma posição e o silêncio esconde, parece-me, os elogios que o teólogo, certo de que nós defendemos a verdade e não uma causa particular, não nos quis conferir publicamente. O seu apelo deve igualmente tocar àqueles que se teriam já desviado de uma fraternidade valorosa, mas oficialmente condenada. Aliás, uma hábil alusão aparece, como um piscar de olhos, ao leitor experiente. No capítulo relativo à Liturgia, uma das referências às quais o teólogo recorre, é a obra de um certo «D. Bonneterre», publicada pelas Edições Fideliter em 1980…

A tentativa de Dom Gherardini, se não enfrenta o Vaticano II e se, por consequência, se livra, de certa maneira, da posição da Fraternidade São Pio X, chega às mesmas conclusões: perante um concílio que não é possível nem anular, nem reduzir facilmente ao âmbito de conciliábulo, é necessário que Roma se reaproprie da sua autoridade doutrinal para precisar, definir, até mesmo condenar. Ao texto, é necessário que a autoridade da Igreja junta notae previae – neste caso posteriorae – que serão como arcos que sustentem o desequilíbrio de uma abóbada que parece, claramente, desmoronar-se no sentido óbvio. Na sua súplica, certo da impossibilidade do caráter dogmático do Vaticano II, Dom Gherardini proclama, além disso, a isenção perante a contradição que aflora em tudo: «No caso em que, no todo ou em parte, essa continuidade não possa ser provada cientificamente, seria necessário dizê-lo com serenidade e franqueza, em resposta à exigência de clareza esperada há quase meio século.» No seu prefácio ao livro, Dom Mário Oliveri, Bispo de Albenga-Imperia, perto de Gênova, corrobora estas afirmações: «[…] Se, de uma hermenêutica teológica católica, resultar que estas ou aquelas passagens e afirmações do concílio não dizem somente nove [a mesma coisa, dita de nova maneira], mas, também, nova [coisas diferentes] em relação à Tradição perene da Igreja, não mais nos encontraríamos perante um desenvolvimento homogêneo do Magistério: teríamos um ensinamento não irreformável e, certamente, não infalível.»

Dom Marcel Lefebvre

lefebvre.a

Em 1987, Dom Lefebvre já tinha, numa entrevista, reclamado que se esclarecessem as contradições, mesmo os erros. Perguntaram-lhe então: «[…] a única solução do “caso” Lefebvre que podeis aceitar parece ser uma desautorização pública do Vaticano II pelo Soberano Pontífice. Mas, pensa ver o Papa, numa manhã de Domingo, anunciar aos fiéis, na Praça de São Pedro que, depois de mais de vinte anos, concluiu-se que o concílio se enganou e que é necessário, pelo menos, anular dois decretos votados pela maioria dos Padres e aprovados pelo Papa?»

Ele respondeu: «Ora, vamos! Em Roma, saberiam muito bem encontrar uma modalidade mais discreta… O Papa poderia afirmar, com autoridade, que alguns textos do Vaticano II têm necessidade de serem melhor interpretados à luz da Tradição, de modo que é preciso mudar algumas frases, para os tornar mais conformes ao Magistério dos Papas precedentes. Seria necessário que se dissesse, claramente, que o erro não pode ser senão “tolerado”, mas que não pode ter “direitos”; e que o Estado neutro no âmbito religioso não pode, nem deve, existir.»

No fim do mês de Janeiro, Dom Babini, Bispo Emérito de Grosseto, não hesitou em prestar homenagem ao fundador de Ecône: «Dom Lefebvre tinha razão nas suas escolhas ideológicas. Foi, certamente, um grande e sábio homem da Igreja, que sempre admirei. Os “lefrebvistas” não são nada cismáticos. João Paulo II viu-se obrigado a excomungá-los, mas fê-lo com lágrimas nos olhos. Mas, repito, se ao menos houvesse, na Igreja Católica, hoje tão progressista, homens sérios e corajosos como este grande homem que foi Dom Lefebvre… cuja memória está prestes a ser reavaliada! Basta considerar aqueles que saem dos seminários, padres bem preparados, corajosos, ao passo que, dos nossos, muitos deles vazios, não saem sempre assim!»

Silêncio sobre a resistência existente

A simples abertura dos colóquios doutrinais e a aceitação de discutir o concílio, parecem ter desatado as línguas e reanimado opiniões escondidas. A tentação perante estas palavras, tão eminentes como raras, que abalam o tabu de um concílio divinizado, seria pousar, hoje, a cruz que Nosso Senhor nos confiou. O próprio Cristo teria podido pôr fim ao Seu caminho para o Gólgota na Sua primeira queda. Mas, antes que estas posições sejam partilhadas pelas autoridades da Igreja, lembremo-nos que elas são fruto da exigência dos que nos precederam. Que restaria, atualmente, se nos tivéssemos contentado com magros compromissos litúrgicos, que constituíam os indultos de há vinte anos?

«O princípio da “Tradição viva” não foi objeto de discussão. Contudo, é susceptível de abrir caminho a um desvio do depósito sagrado das verdades contidas na Tradição.

«Num ambiente como o que reinou durante e depois do Vaticano II, quando só o que era novo parecia verdadeiro, e quando este novo se apresentava com traços da cultura imanentista e fundamentalmente ateia do nosso tempo, a doutrina de sempre não constituía mais do que um vasto cemitério.

«A Tradição ficou mortalmente ferida e agoniza hoje (a menos que já não esteja morta), na sequência de posições irreconciliáveis com o seu passado. Assim, não basta defini-la como viva, se ela já nada tem de viva.»

Não é uma agitação, mas um primeiro sair da linha.

As palavras são prudentes, mas as coisas são ditas.

Mesmo em Roma, começa-se a discutir a catolicidade do Concílio Vaticano II.

Côme Prévigny