Jornal Heri et Hodie (de Campos), nº 33 – setembro de 1986.
Cfr. Folha da Manhã, 31/08/86)

Nosso Senhor fundou uma Igreja hierárquica, com Papa e Bispos a quem se deve obedecer. Esses hierarcas não são donos ou proprietários da Igreja. São administradores; e o que deles a Igreja exige é que sejam fiéis transmissores (Concílio Vaticano I – Dez. 3070). Seu poder é grande, mas não absoluto ou sem limites. E o fiel pode muito bem usar do direito – e da obrigação – de comparação entre o que lhe ensina e o que foi sempre ensinado, conforme proclama o Apóstolo São Paulo: “Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie um Evangelho diferente daquele que vos tenho anunciado, seja anátema”. (Gal. 1, 8). A Igreja quando manda obedecer não o faz incondicionalmente, mas dá ao fiel o direito de analisar, comparar e resistir, se for preciso, como o disse e fez São Paulo com relação a São Pedro, primeiro Papa. (Cfr. Gal. 2, 11-14 e Suma Teológica II-II, q. 33, a IV).

Quando os tempos são normais e as autoridades nos transmitem a verdadeira doutrina tradicional, não há por que não obedecer, como o fizeram os santos de tais épocas. Mas se não, eles sabiam resistir e arrostar todas as pressões, arbitrariedades e abusos de poder.

O célebre hagiógrafo católico Dom Guéranger assim resume esta posição, comentado a resistência oposta pelos fiéis às autoridades que patrocinaram o erro no tempo da heresia do Bispo Nestório: “Quando o pastor se transforma em lobo, é ao rebanho que, em primeiro lugar, cabe defender-se. Normalmente, sem dúvida, a doutrina desce dos Bispos para o povo fiel, e os súditos, no domínio da Fé, não devem julgar seus chefes. Mas há, no tesouro da revelação, pontos essenciais, que todo cristão em vista de seu próprio título de cristão, necessariamente conhece e ‘obrigatoriamente’ há de defender. O princípio não muda, quer se trate de crença ou procedimento, de moral ou de dogma. (…) Os verdadeiros fiéis são os homens que extraem de seu Batismo, em tais circunstâncias, a inspiração de uma linha de conduta; não os pusilânimes que, sob pretexto especioso de submissão aos poderes estabelecidos, esperam, para afugentar o inimigo, ou para se opor às suas empresas, um programa que não é necessário, que não lhes deve ser dado” (L’Année Liturgique, p. 340 ss).

Evidentemente, viver em tempos de crise, como os que nós vivemos, é muito penoso e exige-se então, de cada um, verdadeiro heroísmo. É muito fácil defender causas já vitoriosas. O difícil é trabalhar arduamente pela vitória de uma causa justa. É muito fácil ser o corajoso adepto de uma verdade já vencedora. O difícil é aderir à vontade quando ela está perseguida e humilhada. É mais cômodo juntar-se às fileiras do exército vencedor. É mais agradável seguir a maioria, estar bem com quem está no poder. Mas é tremendamente incômodo lutar pela verdade quando até as autoridades patrocinam a causa contrária e favorecem o erro.

Hoje, quando a história já deu ganho de causa a Jesus Cristo, contra Anás e Caifás, não há quem julgue que, se vivesse naquele tempo, teria sido um fiel discípulo do Salvador e jamais teria tomado o partido de Caifás. Mas, teriam esses mesmos coragem de enfrentar as autoridades oficiais da religião verdadeira de então? Caifás era o Sumo Pontífice, cercado de outros representantes oficiais do poder de Deus. E nós vemos pelo Evangelho a “pressão” que essas autoridades faziam sobre os que queriam seguir a Jesus. São João no seu Evangelho (9, 22) narra aquela passagem dos pais do cego curado por Cristo negando-se a confessar o milagre porque os judeus tinham decidido expulsar quem aderisse a Jesus. É difícil ficar com a verdade até contra a autoridade. Por isso Jesus ficou com bem poucos amigos, porque a maioria não suportou a pressão e o peso da autoridade religiosa e preferiu ficar do lado do Sumo Pontífice Caifás e condenar a Jesus como impostor, ladrão e agitador do povo.

Hoje, séculos depois, quando vemos na História da Igreja (Cfr. Denz.-Sch. 561 e 563) que o Papa Honório I favoreceu a heresia e por isso foi condenado pelo seu sucessor Papa São Leão II e pelo VI Concílio Ecumênico por estar em desacordo com a tradição da Igreja, fica fácil dizer que nós, naquele tempo, também estaríamos do lado de São Máximo e São Sofrônio, que resistiram ao Papa e foram canonizados, isto é, colocados pela Igreja como modelo de fidelidade para todos os cristãos. Mas se defendêssemos o “dogma” da obediência incondicional ao Papa, como muitos hoje o fazem, estaríamos sim do lado dos hereges.

Assim também no confronto entre o Papa Libério e Santo Atanásio, este, defensor da ortodoxia e por isso expulso de sua igreja, e aquele, o Papa, que assinou uma fórmula ambígua e heretizante, ao sabor dos hereges e excomungou Atanásio porque este se recusava acompanhá-lo na sua defecção. O Papa Libério então, em nome da paz e da concórdia, declarou-se em união com todos os Bispos, inclusive os semi-arianos, menos com Atanásio, ao qual proclamou alheio à sua comunhão e à comunhão da Igreja Romana (Cfr. Denz.-Sch. 138). Santo Atanásio, por defender a sã doutrina, foi condenado como perturbador da comunhão eclesial! Hoje, depois que a Igreja canonizou Santo Atanásio como ínclito defensor da Fé e da Tradição, fica fácil dizer que estavam certos aqueles poucos que ficaram ao lado do Santo e foram expulsos das igrejas oficiais, sendo obrigados a se reunirem nos desertos debaixo de sol e chuva, mas conservando a fé intacta e respondendo aos hereges: vocês têm os templos, nós temos a Fé! (Cfr. São Basílio, ep. 242, apud Cardeal Newman – Arians of the Fourth Century, apêndice V). Mas, como ficariam, se vivessem naquele tempo, aqueles que põem na obediência o seu universo mental? Evidentemente do lado mais fácil e cômodo da autoridade, e da heresia por ela favorecida.

Hoje, a história da Revolução Francesa nos ensina quão covardes foram aqueles padres e bispos que, para conservarem as suas igrejas e seus cargos, aceitaram um compromisso com os dominantes e fizeram o juramento revolucionário, e quão heróicos foram aqueles sacerdotes que a isso se recusaram e foram expulsos, tendo que atender ao povo fiel nos paióis, escondidos e perseguidos.

De nossa parte, temos a plena convicção de que o melhor serviço que podemos prestar à Igreja, ao Papa, ao Bispo e ao povo cristão é defendermos a tradição, a doutrina que a Igreja sempre ensinou, mesmo à custa de sermos perseguidos, injuriados e até expulsos das igrejas. Podem nos tirar os templos, mas jamais a nossa Fé! Assim o dizemos, confiados unicamente na Graça de Deus.

A história nos dará razão! E, mais do que o tribunal da história, o tribunal de Deus, para o qual apelamos! Que Nossa Senhora nos dê coragem e perseverança.

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