CARTA

De Sua Eminência o Cardeal L. Billot, S. J. 

Roma, 26 de abril de 1915

A Entronização do Sagrado Coração de Jesus 

Reverendíssimo Padre. 

1. O título.

Pede-me V. Revma. uma palavra de recomendação para o Obra da Entronização do Sagrado Coração de Jesus nos lares, e essa palavra que eu lhe teria dado em confiança só pelo enunciado de um tão belo título, dou-lhe agora com entusiasmo, depois de ter adquirido, graças aos documentos que V. Revma. me forneceu, um conhecimento mais amplo do objetivo da Obra, seu fim, suas condições, suas origens e resultados já obtidos. 

2. O objetivo. 

O que o nome enuncia, realiza-se de fato, e desde logo se vê, até à evidência que não se trata de modo algum de uma devoção nova que, pela sua própria novidade poderia parecer suspeita, muito menos ainda de uma deformação ou modificação aduzida a uma devoção antiga, em detrimento da forma autêntica aprovada e consagrada pela Igreja. Não; é bem a pura, a simples, a franca devoção ao Sagrado Coração, tal qual nos foi transmitida nas revelações da Bem-aventurada Margarida-Maria, tal como a Igreja a sancionou com sua suprema autoridade, sem um traço a mais ou a meros, do que deve a Obra instalar nos lares. 

E de que se trata então? De Entronizar, isto é, colocar no lugar de honra da casa, a imagem do Sagrado Coração, num reconhecimento do soberano Jesus sobre a família e sobre cada um dos seus membros; de fazer cada dia diante dessa imagem a oração em comum, renovando cada dia também, seja o pai ou a mãe, a consagração do primeiro dia; de ser fiel à comunhão, e tanto quanto possível à Hora Santa das primeiras sextas-feiras do mês; de inspirar-se nas lições e nos exemplos do divino Coração e de recorrer a essa fonte de todas as graças, nas alegrias como nos reveses da família; nos bons e nos maus dias; nas penas, nas provações, nas separações, nas lágrimas que se derramam sobre os túmulos, como nos sorrisos que desabrocham sobre os berços; enfim, nas dificuldades da vida cotidiana, como nos acidentes que vêm interromper o seu curso normal e regular. Ora, que há em tudo isto que não contenha a devoção em uso na Igreja? Pura e simplesmente nada mais se faz que introduzi-la na vida familiar e de tal modo que ela aí tenha o lugar que lhe convém; que seja, não uma devoção morta, mas uma devoção operante e ativa de toda a casa, dos pais e dos filhos, dos grandes e dos pequenos, dos patrões e dos empregados, semelhante àquele fermento que a mulher da parábola evangélica mistura às três medidas de farinha para fazer levedar toda a massa [1]. Longe, pois, de ver nisso o que quer que seja que lembre, mesmo em sonho, uma novidade perigosa, vejo ao contrário tudo aquilo que é de natureza a interessar, ao mais alto ponto, o zelo das almas verdadeiramente penetradas do amor de Nosso Senhor. 

3. Realização dos desejos do Sagrado Coração. 

Aí vejo, em primeiro lugar, um meio simples e prático de realizar os desejos expressos à B. Margarida Maria. Como diz V. Revma., Nosso Senhor pediu à Bem-aventurada que seu Coração fosse, nas famílias, objeto de um culto especial. Quem não tem presentes na memória as duas promessas que soam tão docemente, entre tantas outras que Ele fez à sua serva? “Eu estabelecerei a paz nas famílias. Eu abençoarei as casas em que a imagem do meu Sagrado Coração for exposta e honrada.” Daí essa cerimônia que V. Revma. põe à frente do seu programa, e que sem dúvida nenhuma lhe deve ter sido inspirada também pelo exemplo da primeira festa, toda íntima, essa, espontaneamente organizada pelas noviças de Paray-le-Monial, no dia onomástico de sua santa padroeira, 20 de julho de 1685, em honra do divino Coração. 

É preciso ler nos historiadores da Bem-aventurada a descrição dessa primeira entronização que se fez a portas fechadas, no recinto reservado do noviciado; é preciso, principalmente, ouvir a expressão de alegria que inundou então a alma de Margarida-Maria [2]. Teria ela, nesse momento, o pressentimento de que nesse grão de mostarda estava a grande árvore, em cujos ramos, há mais de dois séculos as aves do céu vêm abrigar-se. Eu não o saberia dizer, mas, o que bem sei, é que se o livro do futuro lhe tivesse sido apresentado, e nesse livro a página que tem por título: Entronização do Sagrado Coração nos lares, ela aí teria reconhecido a extensão do gesto tão graciosamente esboçado por suas jovens noviças, e teria visto o verdadeiro cumprimento dos augustos desejos, dos quais fora ela confidente. 

4. Santificação da família e da sociedade. 

Em segundo lugar, vejo na sua obra o meio mais apropriado para a santificação da família, e por ela, da sociedade inteira. Digo o mais apropriado, porque é de regra que as coisas cresçam e se desenvolvam pelos próprios princípios de onde elas tiram a sua origem. Ora, que é o que vemos na origem da família, bem compreendido da família cristã, regenerada pela redenção? Acaso não é o mistério da união de Jesus Cristo e da Igreja, de que o sacramento do matrimônio é, por instituição divina, o sinal inviolável e sagrado? E esse mistério mesmo que outra cousa é senão o mistério do Sagrado Coração aberto sobre a cruz para a criação da Igreja, como foi aberto no paraíso terrestre o lado do primeiro Adão para a criação da primeira Eva? “Propter hoc prima mulier facta est de latere viri dormientis et apellata est vita materque vivorum. Magnum quippe significavit bonum ante magnum praevaricationis malum. Hic secundus Adam, inclinato capite, in cruce dormivit ut inde formaretur ei conjux quae de latere dormientis effluxit.” 

“Consideremos em espírito, diz alhures o nosso grande Bossuet, essa esposa misteriosa, isto é, a santa Igreja tirada e como que arrancada do Sagrado lado do novo Adão durante o seu êxtase (êxtase da morte) e formada, por assim dizer, por essa chaga; de que toda a consistência reside nos ossos e na carne de Jesus Cristo, que a incorpora a si pelos mistérios da Encarnação e da Eucaristia, admirável extensão do primeiro. Ele deixa tudo para unir-se a ela; Ele deixa de um certo modo a seu pai, que Ele tinha no céu, e a sua mãe, a sinagoga, de onde Ele tinha saído segundo a carne, para unir-se a sua esposa encontrada entre os gentios. Somos nós essa esposa; nós que vivemos dos ossos e da carne de Jesus Cristo pelos dois grandes mistérios que acabamos de ver”.

Nós somos, como diz S. Pedro, esse edifício espiritual e templo vivo do Senhor [3], construído em espírito desde o tempo da formação de Eva, nossa mãe, e desde a origem do mundo. Tal é, pois, a união de Jesus Cristo com a Igreja saída do seu Sagrado Coração, traspassado sobre a cruz; união, repito, de que o sacramento do matrimônio é, por instituição divina, o sinal augusto e inviolável; “sacramen tum hoc magnum est, diz o Apóstolo, ego autem dico in Christo et in Ecclesia”. [4] 

Sim, ainda uma vez, o sinal; mas não mais vazio e inexpressivo como eram as figuras do antigo Testamento, mas enobrecido agora com todas as prerrogativas do novo Testamento, mais rico da própria riqueza da realidade definitivamente completa, mais cheio e todo transbordante da graça do inefável, mistério que representa; de modo que, pelo grande sacramento que está na sua base, a família cristã nos aparece como que mergulhando as suas raízes nas próprias profundezas do Coração em que a Igreja teve nascimento. E se assim é, onde a devoção do Sagrado Coração estará melhor colocada? Onde terá ela um meio, e, se ouso dizer, um terreno de cultura mais apropriado? Principalmente, onde se encontrará um meio, mais conatural (perdoe-me este barbarismo) de sobrenaturalizar a família e levá-la à altura do ideal desejado por Jesus Cristo? Mas leiamos de novo o que diz S. Paulo aos Efésios: “Maridos, amai vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e entregou-se a si mesmo por ela, a fim de santificá-la… É assim que os maridos devem amar as suas mulheres como o seu próprio corpo. Aquele que ama a sua mulher, ama a si mesmo. Porque nunca ninguém odiou sua própria carne, antes, alimenta-a e cerca-a de cuidados, como faz o Cristo por sua Igreja, porque nós somos membros de seu corpo, formados de sua carne e de seus ossos. Eis porque o homem abandonará seu pai e sua mãe para ligar-se à sua esposa e de dois eles se tornarão uma só carne. Este mistério é grande, digo em relação a Cristo e à Igreja. De resto, que cada um de vós, do mesmo modo, ame sua mulher como a si mesmo, e que a mulher respeite a seu marido. Filhos, obedecei a vossos pais no Senhor, porque isso é justo. E vós, pais, não exaspereis a vossos filhos, mas educai-os, corrigindo-os e prevenindo-os segundo o Senhor. Servos, obedecei aos vossos chefes, com respeito na simplicidade do vosso coração, como ao Cristo.   Servi-os com afeição, como que servindo ao Senhor, e não a homens, certos de que cada um, seja escravo, seja livre, será recompensado pelo Senhor pelo bem que tiver feito. E vós, patrões, procedei assim também para com eles e desisti de ameaças, sabendo que o Senhor deles e vosso está nos céus, e que ele não faz acepção de pessoas”. [5]

Pois bem, que tal lhe parece, Rev. Padre? Não está aqui a descrição de uma família que tivesse feito entronizar em seu lar o Sagrado Coração? Por mim, quero fazer-lhe esta confidência, parece-me que V. Revma. foi inspirado por S. Paulo; parece-me mesmo, coisa mais grave, que há, no que V. Revma. faz; alguma coisa que parece muito com aquilo que na linguagem comum se chama um plágio. 

5. Reparação Pública

Enfim, sua obra, como seu nome o indica, será uma homenagem de reparação para os direitos, em toda parte desconhecidos, da soberania de Nosso Senhor. 

Eu disse, como seu nome o indica, embora não ignore que se tenha querido fazer desse mesmo nome uma arma contra V. Revma.; mas eu vejo também, e até à evidência, que todas as razões apresentadas são absolutamente sem valor. Uma única, talvez, poderia oferecer alguma longínqua aparência de dificuldade; refiro-me àquela que consiste em dizer que a S. C. dos Ritos, tendo reprovado a coroação da imagem do Sagrado Coração, reprovou “ipso facto” também a sua entronização. Mas vamos devagar: isso é propor a questão de um modo pouco equitativo, atendendo a que coroação e entronização não sejam exatamente a mesma coisa. Pois, se não nos permitem coroar a Jesus Cristo, que não é Rei por nossa graça, nem por nossa vontade, mas sim por direito de nascimento, por direito de filiação divina, por direito também de conquista e de redenção, seja-nos licito, ao menos, imagino, reconhecer sua realeza, afirmá-la altivamente diante dos homens, defendê-la contra aqueles, que a negam, e é isso, nem mais nem menos, o que se faz na entronização, pondo a sua imagem no lugar de honra, no lugar soberano, no primeiro lugar. Além disso, vemos no Evangelho que, depois da multiplicação dos pães, Jesus, sabendo que o povo viria para coroá-lo Rei, escondeu-se e fugiu sozinho para as montanhas; [6] enquanto que, ao contrário, Ele não se opôs quando, no dia dos Ramos, o entronizaram. Trouxeram, dizem os Evangelistas, a jumenta e o jumentinho, puseram encima os seus mantos e fizeram-no sentar-se. E o povo, em grande número, estendeu seus mantos ao longo da estrada; outros cortavam ramos de árvores e juncavam com eles o caminho. E toda aquela multidão à frente e atrás de Jesus, gritava: “Hosana ao filho de David! Bendito seja o que vem em nome do Senhor, o Rei de Israel!” [7]

6. Nada de Coroação.

Que não se trate de coração da imagem do Sagrado Coração, que não terá aliás, notemo-lo de passagem, nada em comum com as coroações que se fazem às vezes de N. Senhora, celebres pelo número e o brilho dos prodígios, como em Lourdes, em N. S. das Vitórias, como em tantos outros santuários. Porque, então, não é a imagem da Virgem como tal que se pretende coroar; mas o que é bem diferente, é a imagem enquanto milagrosa, enquanto distinta das outras imagens por uma especial manifestação do poder e da bondade daquela que aí está representada. E, nessas condições, o gesto da coroação não visa diretamente a Virgem na sua imagem, mas antes a própria imagem na qual, se compraz a Virgem de fazer-se de preferência invocar e honrar. 

Ora, a questão levantada a propósito da coroação da imagem do Sagrado Coração não entrava de modo algum no quadro do caso particular que acabo de relembrar. Nada de estranho, então, em que ela tenha sido afastada ou mesmo, se quiser, reprovada. Ainda uma vez, não falemos mais nisso; falemos, sim, da entronização de que V. Revma. se fez o iniciador e o apóstolo. Oponhamo-la àqueles que dizem: Nolumus hunc regnare super nos [8]. É nos lares que deverá ser pronunciado primeiro o vigoroso e enérgico Volumus, que será uma resposta ao grito de ódio do inferno, mais do que nunca conjurado contra Jesus Cristo.

Resta-me, Rev. Padre, oferecer-lhe, com as minhas mais calorosas manifestações e meus votos mais ardentes pelo feliz sucesso de seu empreendimento, a homenagem dos sentimentos de profundo e religioso respeito nos quais eu gosto de me afirmar.

         de V. Revma. 

o  humílimo e devotado servo 

       L. BILLOT, S. J. 

[1] – Mt. XIII, 33. Lc. XIII, 2.

[2] Vie et Oeuvres, II, 105-104.

[3] 1 Petr. II, 5.

[4] Ef. V, 32.

[5] Ef. V, 25; VI, 9.

[6] Jo. VI, 15.

[7] Mt. XXI, 7-9, Mc. XI, 7-10. Lc. XIX, 35-38. Jo. XII, 12-16.

[8] Lc. XIX, 14.