Padre Davi Pagliarani – 17º Congresso do Courrier de Rome (13 de janeiro de 2024)

Cabe a nós apresentar uma síntese, e expressar a posição da Fraternidade diante de todas as realidades que vêm sendo promovidas pela “Igreja sinodal”.

Tentemos, antes de mais, pôr em ordem esses diferentes elementos, em particular no que diz respeito ao recente documento, Fiducia Supplicans, que já fez correr rios de tinta. É preciso situarmos corretamente esse acontecimento. Por que se chegou a tal ponto, e que é que isso significa? O papel da Fraternidade não se pode limitar a uma reação imediata, instintiva: devemos aprofundar tanto quanto possível nossa compreensão do que está em jogo nesse texto. Se faltar profundidade à nossa análise, correremos o risco de incorrer nas falhas dos que querem reduzir a questão de Fiducia Supplicans a uma excentricidade pessoal do papa Francisco, cuja extravagância não se chega a entender.

Já outras reações a Fiducia supplicans reduzem a questão das bênçãos a uma mera questão de oportunidade: a iniciativa seria inoportuna em certos contextos culturais, sobretudo na África. A realidade, porém, é um pouco mais complexa… Todas essas reações são bem-vindas, são positivas na medida em que manifestam ainda certa capacidade de reação; porém a Fraternidade tem a obrigação de ir mais fundo. Tratemos, pois, de dar um passo atrás, saindo do círculo da agitação midiática.

I – Um pontificado que atende às expectativas do mundo moderno

Fiducia Supplicans não é, em sentido estrito, um ato sinodal, mas um ato produzido pelo Dicastério para a Doutrina da Fé e assinado pelo próprio papa. Trata-se, contudo, de um documento que corresponde àquilo que mais de uma vez vinha sendo ventilado, quando da preparação do sínodo. Pode-se, portanto, afirmar que constitui uma resposta a uma expectativa atual e sinodal.

Essa “Igreja sinodal”, que estamos tentando definir, é uma Igreja que escuta todos os homens: as periferias, a base, todo o mundo, no sentido mais amplo do termo… Uma Igreja que escuta “o mundo” enquanto tal. Ou seja, uma Igreja que dá mostras de uma nova sensibilidade e uma vontade nova de ir ao encontro do mundo.

Sem dúvida, o pontificado atual atende, cada vez mais perfeitamente, às expectativas e exigências do mundo contemporâneo, e, mais precisamente, do mundo “político”, no sentido profundo do termo. Com efeito, de um lado, esse pontificado corresponde a uma visão política hoje predominante em todo o globo, de outro, busca também adaptar-se aos métodos de uma política desejosa de criar uma nova organização social e que, força é reconhecê-lo, em grande medida já triunfou. Cabe aqui a pergunta: por que a presença de representantes da Igreja é tão importante nessa reorganização do mundo?

Não é a primeira vez que se nota tal procedimento: quando surgem novos princípios, quando se almeja construir uma nova sociedade e reorganizá-la, é necessário que uma instituição religiosa venha sacralizar tais princípios. Isto se vê muito claramente e corresponde a uma necessidade arraigada no coração do homem. O homem guardará sempre dentro de si um fundo religioso. Precisa de acreditar em algo, e, portanto, de sacralizar mesmo aquilo que, no fundo, nada tem de sagrado.  Tal necessidade é muitas vezes inconsciente, porém está arraigada na natureza do homem. E por que razão? Porque o homem foi criado para Deus. E nem sequer a Revolução poderá mudar a natureza humana.

Por isso, mais cedo ou mais tarde, o sagrado deve se impor, a fim de dar uma dimensão transcendente àquilo em que se crê, aos princípios tidos por fundamentais. Fácil nos é constatá-lo na história, entre os antigos, que sacralizavam tudo o que para eles era importante: o poder, a força, o fogo, a terra, a fertilidade. Mais próxima do nosso tempo, a Revolução dita “francesa”, a Revolução liberal, fez o mesmo: sendo ela profundamente laica, procedeu a uma total rejeição do passado, a uma dessacralização de tudo o que fazia parte da antiga organização, da religião… porém, ao mesmo tempo, fez questão de, em certo sentido, sacralizar a razão humana. Vejamos também a Declaração dos Direitos do Homem. Declarações são feitas todos os dias, sobretudo na nossa época. São lembradas por algumas semanas, na melhor das hipóteses, mas não têm um alcance perpétuo. À diferença delas, a Declaração dos Direitos do Homem, ao que parece, marcou para sempre a História. Por que será? Porque não se trata de uma simples declaração: trata-se de um verdadeiro Credo. A Declaração dos Direitos do Homem foi redigida com a solenidade de um Credo. Responde a essa exigência religiosa de sacralizar os novos princípios, os novos dogmas sobre os quais se quis construir a sociedade contemporânea. Não faltam exemplos para ilustrar esse fato.  

E o que faz o papa? Que faz hoje a Igreja? Seguem na mesma direção. Sacralizam o que é fundamental aos olhos do mundo de hoje. Vejamos apenas alguns exemplos. Sabemos de que modo a ecologia é apregoada pelo papa, e ensinada por ele. Essa nova teologia “ecológica” vai além das considerações de oportunidade, ligadas somente a um dado momento histórico. Trata-se de uma nova moral, apregoada para todo o mundo, uma moral transversal proposta até mesmo aos ateus. Mas por quê?  Porque é preciso respeitar essa Casa comum – que chamamos de “criação” – , a qual saiu das mãos de Deus, mas que, em si mesma, a despeito de como a concebamos e a chamemos, é a Casa Comum de todos. Há nisso um caráter religioso, um selo religioso impresso em uma pregação e uma demanda premente do mundo político atual. A Igreja intervém apondo esse selo religioso que, como vimos, responde a uma necessidade perfeitamente real. 

Vejamos este outro exemplo: a insistência quanto a ser preciso “deshierarquizar”, abandonar uma visão hierárquica da sociedade, bem como uma visão hierárquica da Igreja. Propõe-se agora uma sociedade onde o poder não seja mais hierárquico, onde seja repartido, redistribuído. Por isso a autoridade partilhada, a luta contra o clericalismo, a emancipação da mulher – que tem estado na ordem do dia já há algum tempo: a Igreja quer que, mesmo dentro de sua estrutura hierárquica de governo, as mulheres tenham o seu lugar. Tudo isto em oposição a um patriarcado tradicional, considerado causa sistêmica e institucionalizada de uma série de abusos de poder ao longo da História. E dentre esses valores modernos que são propostos a todos, mas em particular à Igreja, a fim de que esta os sacralize, encontra-se a agenda LGBT. Ela faz parte desses “valores”. Assistimos à implementação de uma sensibilidade sinodal, que deve inevitavelmente conformar-se à sensibilidade do momento, inclusive quanto a este último ponto.

Ao mesmo tempo, há outro aspecto que merece a nossa atenção. A Igreja tem consciência de, por diversas razões históricas, tem perdido credibilidade, e, portanto, influência. Em tal cenário, acha que é preciso pregar o que “está em voga” para não cair em descrédito. O que é inevitável: tendo perdido de vista a dimensão sobrenatural do seu combate e da sua missão no mundo, a Igreja torna-se complexada em relação ao mundo, junto ao qual perdeu prestígio e credibilidade. Sairá, portanto, à procura de outros meios, no intento de evitar o descrédito. E para ser compreendida por este mundo, irá falar a mesma língua que ele. Grande ilusão, já que a Igreja não foi feita para isso, evidentemente não foi feita para ficar nessa perspectiva horizontal.

Podemos já a partir disso extrair uma primeira conclusão, que nos permite situar adequadamente Fiducia supplicans. Por que isso tinha de acontecer? Pois bem, paradoxalmente porque o mundo laico precisa ainda da Igreja, desse selo religioso que só a Igreja lhe pode dar. E, além disso, porque essa Igreja, que perdeu credibilidade, paradoxalmente precisa ainda do mundo. Essa dupla necessidade deu origem a uma verdadeira simbiose, a uma sinergia que se dá no âmbito político. Fiducia supplicans atende a uma exigência política do momento.

II – Que significa marchar ao compasso da sensibilidade política moderna?

Aqui vamos abrir um parêntese filosófico para chegarmos ao coração do problema. Essa perspectiva política moderna é tributária do pensamento moderno: é o reflexo, a imagem do pensamento moderno. E o pensamento moderno parte de uma categoria fundamental, que é nova, qual seja: a consciência, individual ou coletiva. É a partir da consciência que o homem moderno vai reconstruir, primeiro, o seu pensamento, e a seguir, o mundo à sua volta, esse mundo ao qual a Igreja terá de se adaptar.

Ora, colocar a consciência como princípio e fundamento de todo o mais significa utilizar um princípio dissociado da realidade, de uma realidade que, de resto, perde a primazia sobre as inteligências. Abandona-se assim a ideia de que há uma ordem objetiva a ser conhecida, e à qual nos devemos conformar. Nada disso: tal ordem, é o homem que a estabelece, é a consciência que a descobre dentro de si mesma. E é em função dessa ideia que se reconstrói o mundo ao redor: eis a política moderna, no sentido mais amplo do termo.

Noutras palavras, não há mais uma finalidade, uma perfeição que estaria na ordem das coisas. A felicidade do homem ou da sociedade não se acha mais numa finalidade recebida, conforme à sua natureza. Essa ordem externa das coisas não corresponde mais ao que a consciência doravante irá definir: esta última é o novo princípio de uma nova ordem no mundo. Não há, portanto, mais finalidade nem perfeição no respeito à ordem objetiva das coisas.

Por conseguinte, vamos encontrar na política moderna quatro traços indissociáveis, que paralelamente encontraremos na Igreja do papa Francisco, na Igreja sinodal.

Em primeiro lugar, a política moderna é ideológica. É ideológica na medida em que substitui a realidade pela livre representação que a consciência fez dela. É algo patente: a ideologia acompanha toda e qualquer expressão da política moderna. Por trás de cada partido, não há uma apreensão da realidade objetiva, mas sim uma ideologia subjetivista.

Ela é, ademais – e este é o seu segundo traço -, auto-determinista. É uma consequência inevitável: ela decide por si mesma o que ela, o que homem devem ser. Sozinha monta todo um plano e um projeto, sem partir da realidade, de uma análise da realidade.

Terceiro traço: a política moderna é totalitária. Detrás da imagem da “liberdade” – a “libertação” que se vem alardeando há séculos, sobretudo desde a revolução liberal – a política moderna é totalitária, pois é a realidade que se deve conformar a ela, sob pena de ser constrangida a tal. Impõe-se à realidade uma ideia concebida na consciência individual ou coletiva, e assim se constrange a realidade. Daí é que nascem os totalitarismos. Vivemos num mundo totalitário: há ideias que são impostas à realidade, que a constrangem neste ou naquele sentido.

Por fim, o quarto traço: ela é convencional. Repousa, não sobre a ordem natural, mas sobre uma ordem convencional: o que é certo, o que é preciso fazer, passa a ser decidido, escolhido arbitrariamente pela consciência, já não é apreendido nem acolhido a partir do real.

Se estes quatro traços da política moderna não são novos, é todavia interessante observar de que maneira se aplicam à Igreja sinodal em particular.

Antes, porém, de vermos essa aplicação, é preciso entender que diante dessa modernidade, a Igreja não pode ficar indiferente. Não há uma terceira possibilidade:

            – ou a Igreja condena o primado da consciência sobre a realidade, sobre a Revelação, e juntamente toda a política moderna que deriva disso;

            – ou a Igreja se encaixa dentro desse sistema.

Tal sistema está em toda a parte. Essa perspectiva, essa visão das coisas, é onipresente. Não se pode ter a pretensão de ficar neutro: não se expor demasiado, não condenar demais; tentar conversar, ou ganhar o que quer que seja. Não, de modo algum! Que tinha feito a Igreja até o Concílio? Condenara esse sistema. Hoje, a Igreja se adéqua a esse sistema, adota-o para si e lhe dá a sua bênção. É isto que importa sobremaneira entender. 

Essa Igreja sinodal é, a seu modo, ideológica. Criam-se necessidades pastorais que existem só na mente de quem as concebe; a doutrina já não é recebida, mas produzida. Por exemplo, os senhores por acaso acham que existem no mundo milhões de casais LGBT a pedirem a bênção da Igreja? De modo algum! Mas é importante hoje para a Igreja, pelas razões que acabamos de ver, fazer um aceno, mostrar seu empenho. Documentos como Fiducia supplicans têm um valor político em relação ao mundo, a despeito de qualquer demanda de bênção real, de qualquer exigência pastoral, e a despeito do número de bênçãos que serão dadas. Pouco importa se há gente que é contra, episcopados inteiros que não são a favor. Rigorosamente falando, pouco importa! O que sim importa é que tais textos tenham sido escritos, publicados, em razão do seu significado político. 

Encontra-se nela também o aspecto auto-determinista. Sim, pois a Igreja já não se concebe numa estrutura imutável, dada por Deus, com objetivos imutáveis, com uma missão imutável. Não, é antes uma Igreja que, conforme às circunstâncias históricas, e sobretudo conforme às exigências do momento, é capaz de se dinamizar e de se dar uma finalidade nova, suscetível sempre de evoluir.

A Igreja sinodal é também totalitária. Por qual razão? Por forçar a Igreja, enquanto corpo social, a conformar-se a princípios que não lhe são conaturais. Força-se, pela violência, a realidade das coisas. Daí certas reações, perfeitas ou imperfeitas, completas ou incompletas. Diversas vezes apontou-se uma aparente contradição entre a escuta de uma Igreja sinodal – aberta a todo o mundo e onde todo o mundo pode falar, participar etc. – e ao mesmo tempo, ações muito autoritárias, por parte do papa Francisco em particular, ou pelo menos realizadas sob o seu pontificado. Tal contradição foi apontada. Como resolvê-la? A resposta está aqui: a Igreja sinodal é totalitária. Impõem-se à realidade conceitos, ideias que não lhe correspondem; e, necessariamente, quando se usa de violência, quando se forçam as coisas, age-se como totalitário; usa-se a própria autoridade para forçar as coisas, ao mesmo tempo em que se afirma estar à escuta.

Ela é, finalmente, convencional: é a base sinodal que, em teoria, sugere as escolhas do governo. O que é decidido é sempre apresentado dessa maneira: é o povo de Deus que, pelo seu sensus fidei, sugere tal via ou tal caminho a seguir.

Eis aí a nossa clave de leitura. É preciso enxergar, nas grandes decisões desse pontificado, a vontade de se conformar o mais possível aos grandes princípios do mundo de hoje, e do mundo político, com tudo o que isto implica.

III – O sínodo, instrumento revolucionário

Olhemos agora para o sínodo enquanto tal, dentro desse contexto. Tem o sínodo alguma função em particular?

Não vou me deter no aspecto teológico, doutrinal, segundo o qual o sínodo é a expressão da colegialidade, dessa vontade de governarem a Igreja todos juntos a partir da base.

Percebe-se a par disso uma função prática, que podemos chamar de “função política”, do sínodo. Para que é que ele serve? Serve para pôr em circulação ideias que querem que sejam sancionadas, transformadas em lei, atribuindo-as a uma expectativa, a uma exigência, a uma necessidade do Povo de Deus. Ora, não se pode deixar de responder àquilo que todos, ao que parece, estão pedindo no seio da Igreja – de vez que tudo isso é atribuído ao sensus fidei. Ora, inevitavelmente, em tudo o que o Povo de Deus pede, encontra-se o eco de tudo o que seja expectativa do mundo contemporâneo, pura e simplesmente.

Se olharmos o documento de trabalho do sínodo, o Instrumentum laboris[1], publicado há mais de um ano, veremos que está tudo ali! É como um magma, uma massa informe onde se encontra tudo e o seu contrário. Munida de tal documento, a autoridade escolhe o que lhe parece mais conveniente. “Isto aqui está bem, é o momento, está maduro, a situação é favorável, dá para fazer…”

Qual é a consequência inevitável de tal maneira de agir? À força de dizer sempre “sim” a tudo e ao seu contrário, sem partir de um princípio doutrinal, sem partir da realidade, senão apenas escutando as expectativas de todo mundo, acaba-se por fazer coisas que estão fora da realidade.

Sublinho esse aspecto de desconexão da realidade, porque essa Igreja sinodal é uma Igreja que tem a pretensão de estar à escuta de toda a gente, e com os pés bem arraigados nos sentimentos do povo de Deus, quando, na realidade, ela é utópica! A bênção prevista por Fiducia supplicans não é apenas um erro, é uma utopia. Não tem sentido algum. Por trás dela, está a quimera de um mundo novo, e, na sua esteira, uma Igreja completamente nova. Há nisso como uma espécie de milenarismo. Estamos diante de uma ilusão utópica e milenarista. Fora da realidade.

A realidade concreta, a verdadeira realidade que a Igreja é chamada a conhecer e a pregar, é o Evangelho, o dogma, a Revelação; é Nosso Senhor Jesus Cristo, a moral cristã, a luta contra o pecado. Mas tudo isso se torna, aos olhos dos reformadores, uma realidade abstrata, sem mais nenhuma influência na vida concreta. O que conta, na perspectiva moderna, é a conexão com o Povo de Deus: é isto que consideram como a única realidade concreta, apesar de todas as suas utopias, e é o que opõem radicalmente a tudo o que é doutrina da Igreja, a qual, sem ser negada diretamente, é no entanto posta de lado, considerada como verdade abstrata.

A Igreja, metida nesse sistema, encadeada, enfeitiçada, enredada nesse sistema… a Igreja necessariamente escuta e tenta satisfazer a todas as expectativas, sem indicar nenhuma finalidade, nenhuma perfeição última; sem transcendência, sem bem supremo a ser alcançado. Quem hoje ainda fala da vida eterna?

Lancemos um olhar sobre o estado da Igreja, que passa hoje por esse debate mundial acerca de certas “bênçãos”! É bom que haja havido reações. Mas vê-se o ponto a que chegamos… E enquanto episcopados inteiros ficam a debater sobre abençoar ou não homossexuais, ninguém mais fala do Evangelho, ninguém mais fala de Nosso Senhor, ninguém mais fala da graça, ninguém mais fala da Cruz. E por quê? Porque isso tudo é abstrato.

A hierarquia da Igreja encontra-se hoje numa situação análoga àquela em que se encontravam os pais de família depois de 1968. Refiro-me ao pai de família desiludido, que não sabe mais por que é que tem filhos. Com a crise de 1968 e toda a deterioração progressiva que a ela se seguiu, um pai de família não sabe a razão por que é pai. Não sabe para que deve educar, com que fim, por que motivo… Que faz então um pai família moderno?

Em primeiro lugar, é preciso que a família fique de pé: de vez que, se não há um fim a ser alcançado na educação, o qual justifica plenamente o papel do pai e da mãe, a família corre o risco de se dissolver. Porém, ainda quando um pai consegue manter de pé a família, vê o seu papel reduzido, pela força das circunstâncias, ao dever de atender unicamente às exigências concretas ou materiais. A criança tem fome, há que arranjar-lhe comida; precisa de instrução, há que enviá-la para a escola; precisa de praticar esporte, precisa de um médico, precisa de roupas… aliás, sem que se saiba bem para que. Em vez de indicar uma finalidade, atender a exigências, que, boas ou más, são sempre contingentes. É desolador.

A Igreja sinodal corresponde a essa paternidade diminuída, mutilada, do pai de família depois de 1968. E o mais das vezes, que é que os filhos pedem? Não necessariamente instrução, mas o que corresponde aos seus caprichos.

IV – Fiducia supplicans: uma velha história

Acabamos de, com as considerações precedentes, colocar em seu devido lugar essa possibilidade de abençoar os casais irregulares do mesmo sexo. Vejamos esse fato recente como algo que faz parte de uma história mais antiga. Eis o que aqui nos interessa: a Igreja a ceder ante a pressão do momento.

De onde vem essa pressão? Por que ela é tão forte? É preciso entender o alcance dessa pressão exercida sobre a Igreja, a fim de se entender a gravidade da decisão que a Igreja tomou.

Tenhamos sempre presente o seguinte princípio:  a Revolução, por definição, destrói uma ordem estabelecida. Refiro-me aqui à Revolução com R maiúsculo, no sentido mais amplo do termo, abrangendo todas as revoluções possíveis. A Revolução destrói toda e qualquer ordem, e para o conseguir, deve destruir toda e qualquer distinção, uma vez que, sem distinção, já não há mais ordem possível.

Por que razão, por exemplo, há uma ordem na família? Há na família uma ordem porque existem distinções. O pai não é a mãe, não é o avô, não é a criança, não é filho nem filha: o pai é pai e não outra coisa. A mãe é mãe e não outra coisa. Espera-se de cada um que faça o que lhe compete, e assim dentro da família existe uma ordem naturalmente estabelecida, o que permite à família alcançar o seu fim.

Mas como a Revolução destrói toda e qualquer ordem, deve destruir toda e qualquer distinção: não apenas em âmbito familiar, mas no âmbito de toda a sociedade. E por que essa vontade de destruir? Tentemos olhar esses princípios de maneira teológica. Por que afinal a Revolução tem essa necessidade de destruir toda e qualquer distinção?

Porque todas as distinções, de uma maneira ou de outra, derivam da distinção mais fundamental, ou conduzem a ela: a distinção que há entre o humano e o divino, entre Deus e o homem. A primeira revolução começa com Lúcifer, que não aceita a distinção que existe entre ele e Deus. Todo o esforço do modernismo, ao confundir o sobrenatural e o natural, é uma manifestação dessa revolução.

A consciência humana divinizada é também uma maneira de suprimir essa distinção fundamental: o homem, assim, torna-se o princípio do bem e do mal, o princípio do verdadeiro e do falso. Nessa perspectiva, toda distinção tradicional, ligada ao senso comum, deve ser suprimida, por ser um sinal da distinção fundamental de que falámos, um eco da distinção primeira e última entre o homem e Deus: tais distinções são parte integrante de uma ordem rechaçada, que se quer reconsiderar radicalmente. Muito comum é então que se intervenha na linguagem: expressões passam a ser proibidas, certas palavras não podem mais ser usadas, são demonizadas, sobretudo em se tratando de expressões que veiculam as distinções tradicionais.

Consideremos outro exemplo muito concreto: as distinções tradicionais entre mestre e aluno, patrão e operário, pais e filhos, sacerdotes e leigos; as distinções entre os diferentes povos, entre as diferentes religiões… Tais distinções são suprimidas ou reconsideradas. A ênfase é posta no que os homens têm em comum: a terra, a Casa Comum, a dignidade humana, os direitos do homem etc.

Porém, concretamente, qual é a última distinção a ser destruída? A distinção mais profundamente arraigada na natureza física do homem e dos animais? A que surgiu diretamente das mãos de Deus no dia da criação? De que distinção se trata? Criou-os macho e fêmea[2]. Deus criou macho e fêmea os animais. O homem e a mulher: eis a distinção mais imediata, mais evidente. E a esta divisão se ligam funções bem precisas, papéis bem determinados.

Em sendo suprimida essa distinção, ou se o mundo a não puder mais compreender, não há mais como explicar a beleza da paternidade, emanação, aplicação, aqui na terra, da autoridade de Deus. É algo de belo, é um conceito revelado, é são Paulo quem o destaca. Um pai de família que concebe a sua missão como prolongamento daquela de Deus sobre a criação, é algo muito nobre… Tudo isto, porém, faz-se incompreensível e deve ser destruído. Quer-se chegar a uma humanidade em que não se compreenda mais o que é homem e mulher, macho e fêmea. Quer-se chegar a suprimir tal distinção, ao menos nas inteligências.

Trata-se, pois, de um processo que vem de longe, que tem uma razão muito específica. É preciso entendê-lo em todas as suas implicações. Há por trás de tudo isso uma vontade diabólica. No sentido teológico e mais profundo do termo. Foi Satã o primeiro a recusar tal distinção: ele quer que todos, sem exceção, sigam pelo mesmo caminho: “Sereis como deuses”[3].

E a supressão de todas essas distinções, e, em particular, da última, leva à autodestruição da humanidade. Uma humanidade onde não há mais pai, nem mãe, porque não se sabe mais o que seja um pai, uma mãe, um homem ou uma mulher, é uma civilização que está fadada a extinguir-se. Não pode mais continuar. Por quê? Porque Satã é homicida. Desde o começo, tenta enganar o homem para fazê-lo perecer. E consegue. Todos hoje têm que aceitar esses princípios, e a supressão dessas distinções – obviamente, com matizes, tolerâncias, porquanto é preciso esconder com habilidade o jogo. Todos hoje em dia estão obrigados a aceitar, de uma maneira ou de outra, a supressão dessas distinções, e portanto da ordem que elas pressupõem.

Mas vejamos, para que houve a Encarnação? Para que existe a Igreja? Qual é o papel da Igreja? Qual é o papel do papa? É justamente combater tais coisas. É relembrar quais são as distinções: a primeira, entre o homem e Deus, e todas as que dela decorrem, tudo o que vem em seguida. Reconstruir essa ordem destruída pelo pecado, pela Revolução, que é o seu eco na História, eis a missão da Igreja, a razão da Encarnação.

Mas que fazem os homens de Igreja? Não somente seguem na mesma direção que o mundo contemporâneo, senão que lhe dão hoje a sua bênção. É aqui que se compreende toda a gravidade de Fiducia supplicans. É importante que cada um de nós faça um esforço para compreender o que está em jogo no que acontece agora. Essa agenda está posta aí. Pouco importa se darão ou não essa bênção de imediato, porque não é o momento, talvez mais tarde, talvez não na África… o problema é muito mais grave. Os homens de Igreja abençoaram isso. Como explicar?

V – Seria o papa Francisco o único responsável?

Era questão de tempo. Ficamos escandalizados, porém não de todo surpresos. E por que era questão de tempo? Porque a moral é filha do dogma, filha da fé, e não o inverso. Eu defino as minhas regras de conduta em função do que acredito serem o homem, Deus, a alma, o pecado, a redenção. É em função do que creio ser verdade que estabeleço minhas regras de comportamento.

Tomemos o exemplo da liberdade religiosa, a mais gritante expressão do erro moderno, da decadência do dogma e da fé. A liberdade religiosa vem sendo apregoada há sessenta anos, desde o Concílio. Que achavam que ia acontecer? Uma vez que tenhamos a possibilidade de escolher nosso Deus, de escolher nossa própria ideia de Deus, ou nenhuma ideia de Deus, com muito mais razão escolhemos nossas regras de comportamento, nossa moral, escolhemos o que queremos ser. Escolhemos se queremos mudar e ser outro, se não estivermos satisfeitos com o que o bom Deus nos deu ou com a maneira como nos fez – segundo ideias estranhas sobre a lei natural, por exemplo. E por que não? Já que podemos escolher nosso próprio Deus, nossa própria religião – é a Igreja que agora no-lo ensina –, com mais razão podemos escolher qualquer outra coisa, podemos escolher com quem viveremos, ou com quem vamos fundar uma família, ou outra espécie de família.

Outro exemplo é o ecumenismo. Que é o ecumenismo? É a libertinagem entre as religiões! E por isso, necessariamente, quando se está impregnado desse espírito, mais cedo ou mais tarde vem a libertinagem dos costumes. A moral é filha do dogma. E o dogma foi destruído há muito tempo. 

Era necessário que se tirassem as conclusões. E o papa Francisco o faz de um modo bem lógico. O problema, porém, não surgiu com ele.

E o papel da Fraternidade? É remontar até as causas, até os princípios.

VI – Um sinal dos tempos

Existem nessa trama elementos que sejam próprios da crise da Igreja que estamos vivendo? De fato, há de se reconhecer que há nisso algo de novo.

Menciono apenas um: trata-se da cegueira do espírito. Vivemos um momento em que os homens de Igreja estão cegos. Nem sequer se preocupam em se perguntar se estão em continuidade ou em descontinuidade com a Tradição, a fim de resolver certos problemas… Tudo isso já ficou para trás. Trata-se da cegueira mais completa. É o pior dos castigos. A cegueira do espírito é um castigo de Deus. É a resposta de Deus que se retira, que retira a suas luzes. É a resposta de Deus que fica em silêncio.

Por quê? Porque durante sessenta anos ninguém Lhe quis dar ouvidos. Deus então se retira, mostrando a todos os homens de boa vontade o que acontece na sua ausência; mostrando as consequências dessa sua retirada. É o castigo daquele que se deixa levar pelo mundo, que busca a todo instante a comodidade oferecida pelo mundo, e sobretudo o acomodar-se com o próprio mundo. Cedo ou tarde sobrevém-lhe a cegueira. O mundo cega por meio das suas sutilezas. O mundo cega a inteligência e destrói a vontade. É inexorável: ou condenamos tudo o que há de mal no mundo, ou nos deixamos apanhar, e cedo ou tarde ficamos cegos.

Segue-se daí a perda total do senso do sobrenatural, do reto juízo; e não só do juízo acerca das realidades sobrenaturais, a Trindade, a Redenção… Não, perde-se aqui até mesmo o juízo acerca das realidades naturais. Já não se é capaz de compreender as distinções mais elementares, evidentes, que estão inscritas na natureza humana. Já não se é capaz de as defender pelo que significam: é realmente a cegueira do espírito.

Sessenta anos de erros, de caos, de mentiras. Sessenta anos de capitulação diante do mundo. É a isso que se chegou. É isso o que estão abençoando.

VII – Do primado da consciência à primazia de Cristo Rei

Haverá solução?

Sim, e o primeiro passo é acreditar na graça.

Essa preocupação em agradar ao mundo, esse medo de o contradizer, procedem de uma visão das coisas meramente natural, meramente política. É por isso que insisti nesse termo. É uma visão que é meramente humana, uma visão na qual a graça já não conta. Está excluída. Não se crê mais nela!

E o mundo contemporâneo continuará necessariamente na direção que escolheu, porque não há o elemento sobrenatural capaz de o mudar. Não há a graça. Não há a redenção capaz de renovar este mundo. A redenção doravante quererá dizer outra coisa.

É preciso acreditar na graça.

E a outra solução que vem junto, que é a consequência de nossa fé na graça, é uma solução que Dom Lefebvre frisava a cada oportunidade, a cada sermão. É a quintessência do tesouro que ele nos legou. Solução muito simples, contanto que a compreendamos bem e nos consagremos a ela totalmente.

Trata-se de Cristo Rei.

É preciso voltar a Cristo Rei.

Vimos já que estamos diante de um problema político, que afeta o mundo e afeta a Igreja.

Voltar a Cristo Rei.

Rei das inteligências, em primeiro lugar. Rei dos espíritos. O só capaz de esclarecer sobrenaturalmente e naturalmente. Vimos de que maneira, ao perdermos a luz sobrenatural, cedo ou tarde perdemos a luz acerca das coisas naturais mais evidentes.

E rei dos corações. Rei do verdadeiro amor, da verdadeira caridade. É isso o que faz falta. Todos falam de amor, mas quando perdemos a noção de caridade, quando perdemos a noção de redenção, quando perdemos a noção de Deus, qualquer um pode ver de que maneira a palavra “amor”, mesmo no seio da Igreja, pode ganhar significações escandalosas. Chama-se de amor o que não é amor. Abençoa-se o amor, e que amor!

Rei das inteligências, rei dos corações, rei da verdadeira caridade…. e rei dos povos. Vejam a inconsistência de todos esses falsos princípios abençoados pela Igreja, em relação às consequências, aos resultados: nunca o mundo se viu em situação tão catastrófica. O mundo está em guerra… e não há ninguém na Igreja para dizer que a solução está em Cristo Rei. E por qual razão? Porque perderam a luz sobrenatural, e com ela, a luz natural.

A questão da paz, o problema político, no sentido mais nobre do termo, inclui uma visão do homem, da história, inclui um programa. E na nossa situação, na situação presente da Igreja, entende-se ainda melhor a primazia de Cristo Rei; entende-se melhor aonde o abandono dessa doutrina, desse dogma, desse princípio… enxerga-se aonde tudo isso nos trouxe: à destruição de toda a ordem, na Igreja como no mundo.

Cristo Rei não é uma ideia abstrata. Não é um sonho. Não é uma quimera. É o único meio dado à Igreja para restaurar todas as coisas. E foi dado tão somente à Igreja, e é este o paradoxo que para ela se tornou incompreensível a partir do momento em que ela se quis não apenas no, mas do mundo. Cristo Rei é o meio que só a Igreja é capaz de compreender e de ministrar aos homens. É o seu tesouro. É quintessência de sua doutrina social. A ela é que a realeza de Cristo foi confiada. Só ela a pode pregar e fazer frutificar. Só por ela o Rei dos reis pode reinar sobre os homens, Ele que é o Caminho, a Verdade e a Vida[4].


[1] Instrumento de Trabalho para a Primeira Sessão do Sínodo sobre a Sinodalidade (outubro de 2023), “Alarga o espaço da tua tenda”.

[2] Gên. 1, 27-28: “E criou Deus o homem à sua imagem: criou-o à imagem de Deus, e criou-os macho e fêmea. E Deus os abençoou, e disse: Crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a, e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se movem sobre a terra.” 

Mat. 19, 4: “Ele, respondendo, disse-lhes: Não lestes que quem criou o homem no princípio, criou um homem e uma mulher?”

Mar. 10, 6: “Quando Deus os criou, formou um homem e uma mulher.”

[3] Gên. 3, 4-5: “Porém a serpente disse à mulher: Vós de nenhum modo morrereis. Mas Deus sabe que em qualquer dia que comerdes dele, se abrirão os vossos olhos: e sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal.”

[4] Cf. Jo. 14, 6.