“Enquanto o papa e os bispos permanecerem aderidos a esses princípios, o estado de crise vai continuar na Igreja.”

Cinco anos após a eleição de Bento XVI (19 de abril de 2005), seis meses após o início das discussões doutrinárias entre Roma e a Fraternidade Sacerdotal São Pio X, o Rev. Pe. Régis de Cacqueray, superior do distrito da França, esboça um balanço do pontificado atual, em uma entrevista a Le Chardonnet (Boletim paroquial da igreja de St-Nicolas, Paris, abril 2010). Ele mostra em particular que o papa continua firmemente fiel aos princípios do Vaticano II.

 

Padre, como os fiéis católicos podem reagir após esses cinco primeiros anos do pontificado? Devemos falar ainda de uma crise na Igreja?

Há efeitos e há causas. (…) As causas são mais importantes, porque dessas causas sempre podem surgir uma série de consequências novas, ainda piores. No entanto, o cardeal Ratzinger nunca analisou essas causas. E é de temer que, tendo se tornado papa, após cinco anos de seu pontificado, ele não tenha se tornado mais lúcido.

Dão testemunho disso todos os seus discursos publicados regularmente no Osservatore Romano e que constantemente reafirmam os três princípios da liberdade religiosa (tirado da declaração Dignitatis Humanae), do laicismo de Estado (tirado também da Constituição Gaudium et Spes) e do ecumenismo (tirado do decreto Unitatis redintegratio), princípios que estão em contradição direta com o ensinamento constante e unânime do magistério papal anterior ao Vaticano II. São os princípios que estão na raiz de todas as consequências presentes e – Deus nos livre – das que podem ainda estar por vir. Enquanto o papa e os bispos permanecerem aderidos a esses princípios, o estado de crise vai continuar na Igreja.

Pouco depois das sagrações de Ecône, em um Discurso dirigido em Julho de 1988 à Conferência Episcopal do Chile, o cardeal Ratzinger não reagiu energicamente contra a contestação progressista? Esse discurso, que aparentava uma defesa verdadeira em favor de certa continuidade na Tradição, não anunciava já o Discurso de 22 de dezembro de 2005, condenando a hermenêutica da ruptura (ou seja, a interpretação do Concílio como uma ruptura com a Tradição)?

Esse discurso de 1988 é, juntamente com Rapporto sulla fede (Entrevista sobre a Fé) de 1984, o principal argumento do que tem sido chamado com razão “a tese Ratzinger”: um Concílio muito bom realizado por pessoas muito más. A tese falsa do cardeal Ratzinger é que o Vaticano II é bom e, portanto, não é preciso reformá-lo, apenas é necessário rever a aplicação (ou a “recepção”, como eles dizem), pondo fim aos simples abusos. Esta tese é falsa, pois, como demonstrado em um excelente artigo de novembro de 1988 de Sim Sim Não Não (página 4), “alguns textos do Concílio são realmente separados da Tradição e não podem de forma alguma ser conciliados com ela”. Não se trata apenas, como pensa o Cardeal Ratzinger, de que “muitas apresentações dão a impressão de que, com o Vaticano II, tudo mudou e o que precedeu não tem mais valor”. Não. Há textos do Concílio, que constituíram uma mudança em relação ao que o precedeu e exigem, consequentemente, uma escolha: ou o Vaticano II ou a Tradição. Textos como Nostra Aetate para as religiões não-cristãs, Unitatis redintegratio para o ecumenismo, Dignitatis Humanae sobre a liberdade religiosa, levam efetivamente e com razão a se perguntar, como fez o cardeal Ratzinger “se a Igreja de hoje é realmente a mesma de ontem ou se ela foi substituída por outra sem sequer se dar ao trabalho de avisar os católicos”.

Em 1988, no dia seguinte das sagrações, a diferença entre o cardeal Ratzinger e Dom Lefebvre era que, para o segundo, são os próprios textos do Vaticano II que estão na origem dessa mudança observável nos fatos, enquanto que para o primeiro, há apenas “muitas apresentações que dão a impressão de que com o Vaticano II, tudo mudou”. E vinte anos depois, o Discurso de 22 de dezembro não negou o comentário enviado à conferência dos bispos chilenos: longe da hermenêutica da ruptura (“muitas apresentações que dão a impressão de que com o Vaticano II tudo mudou”), devemos voltar a uma hermenêutica da continuidade (a letra do bom Concílio, longe de todos os abusos). Devemos, portanto, voltar aos textos, incluído aquele sobre a liberdade religiosa, porque estes textos são considerados conformes com a Tradição. Esses dois discursos em 1988 e 2005 alimentam a ilusão de resolver a crise da Igreja ao voltar à letra envenenada do Concílio. Ilusão constante e funesta.

Mas, padre, ainda que a juventude teológica do Padre Joseph Ratzinger foi influenciada pela nova teologia (La nouvelle théologie), hoje todos falam de um papa agostiniano. Com Bento XVI podemos falar abertamente sobre os abusos cometidos na Igreja a nível doutrinal e litúrgico. Bento XVI quer, sem dúvida, tomar distância em relação a João Paulo II e o senhor não acha que seria preciso esperar ainda um pouco mais de tempo? Paris não foi construída em um dia, e Roma também não!

(…) Observe que Bento XVI não esperou cinco anos para dissipar as ilusões que sua reputação de teólogo conservador poderia ter suscitado. Quando se mede o caminho percorrido em tão pouco tempo, podemos dizer que ele não deve nada em relação a João Paulo II. O papa bávaro já esteve três vezes em uma sinagoga, na Alemanha em 2005, nos Estados Unidos em 2008, e finalmente em Roma, mais recentemente, em janeiro passado. Aliás, a visita oficial à sinagoga de Colônia foi um dos primeiros passos do novo Papa, eleito apenas quatro meses antes. Nessa ocasião, Bento XVI claramente deu a entender que a oposição entre o Novo e o Velho Testamento levanta “questões teológicas ainda discutidas”, como se, apesar de tudo, a recusa do princípio mesmo da salvação, a recusa em reconhecer Jesus Cristo como a Pessoa divina do Verbo Encarnado constituísse uma opção legítima para os judeus. E esta primeira iniciativa de 2005 foi seguida por uma visita à igreja cismática de São Jorge no Fanar em 29 de novembro de 2006, pela oração na Mesquita azul de Istambul em 30 de novembro de 2006, pela reunião ecumênica de oração em Nápoles em 21 de outubro 2007. A partir desta última reunião, o Papa começou a dizer que esta iniciativa “nos leva de volta em espírito a 1986, quando o meu venerado predecessor João Paulo II convidou sobre a colina de São Francisco os Altos Representantes religiosos a rezar pela paz, sublinhando nessa circunstância a ligação intrínseca que une uma autêntica atitude religiosa com uma viva sensibilidade por esse bem fundamental da humanidade”. E acrescentou: “No que diz respeito às diferenças das diversas religiões, somos todos chamados a trabalhar pela paz”.

Tudo isso não tem nada de surpreendente se tivermos em conta os comentários do papa durante uma entrevista dada à televisão polonesa em 16 de outubro de 2005: “Penso que tenho por missão essencial e pessoal”, disse ele, “não promulgar numerosos e novos documentos, mas garantir que os documentos [de João Paulo II] sejam assimilados, porque eles constituem um tesouro muito rico, eles são a interpretação autêntica do Vaticano II. Sabemos que o Papa era o homem do Concílio, que tinha assimilado interiormente o espírito e a letra do Concílio e, através desses textos, ele nos fez verdadeiramente compreender o que queria e o que não queria o Concílio” (Bento XVI, “Entrevista à televisão polonesa, 16 de outubro de 2005” na DC n º 2346, 20 de novembro de 2005, p. 1051).

Portanto, uma coisa é certa: Bento XVI ainda não está pronto para se distanciar de João Paulo II, pelo menos no essencial daquilo que gera a crise da Igreja. Através do seu predecessor, é a herança de todo o Concílio que se impõe a ele. (…)

Todos estes fatos são inegáveis, mas por que, então, a mídia dá a Bento XVI essa imagem ilusória de um papa conservador?

Não nos deixemos impressionar pela mídia. A mídia deve agradar a multidão e a multidão não costuma se levantar muitas vezes ao nível dos seus membros mais perspicazes…

Por outro lado, é verdade que nos detalhes de seu governo Bento XVI se esforça por restaurar um mínimo de disciplina. Não podemos negar que o fim do pontificado de João Paulo II deu lugar a numerosos abusos. O novo papa é um homem de ordem e ele queria retomar as rédeas do poder. Ele tem um estilo de governo que vai incontestavelmente a favor de certo rigor, sobretudo no domínio da moral. E isso desagrada profundamente os poderes deste mundo, que querem ir até as últimas consequências da revolução. Busca-se denegrir a imagem da Igreja cuja cabeça visível ainda mostra certa resistência em face da corrupção do mundo moderno.

Mas em termos de doutrina (que também deve inspirar toda a moral) os falsos princípios que inspiram este governo, infelizmente, continuam os mesmos.

Essa dualidade que divide a política de Bento XVI, entre uma fidelidade sem falhas aos princípios revolucionários do Vaticano II e uma aparência de retorno à ordem no plano disciplinar, não deveria surpreender-nos, porque há nisso uma constante do modernismo. Pensemos no que disse São Pio X na Pascendi: os modernistas não são todos consequentes no mesmo grau. Alguns admitem os princípios, mas querem pôr um freio nas consequências daí resultantes. Este ilogismo é paradoxalmente lógico… na lógica do modernismo. Isto, diz São Pio X, “resulta do conflito de duas forças, uma empurrando ao progresso, enquanto a outra tende à conservação”. A força que empurra à conservação é a autoridade que reprime o abuso; a força que impulsiona ao progresso, esses são os imperativos do Concílio.

O senhor não teme que uma linguagem tão crítica possa indispor a Santa Sé em relação a nós?

Queremos conservar a nossa fé e agradar a Deus, ou queremos agradar aos homens? O papa e os bispos estão imbuídos do concílio, imbuídos do liberalismo e do modernismo: isso são os fatos. E contra os fatos, não há nada a fazer, não há “se” nem “mas”. Aqueles que pensam com “se” ou com “mas”, esses são os hesitantes ou os complicados, todos aqueles cujas falsas inquietudes reduzem as forças ao invés de aumentá-las. Temos de ser fortes, fortes na nossa fé. É São Pedro quem disse: é preciso resistir ao diabo permanecendo “fortes na fé – fortes in fide” (I Pedro 5, 9).

Se verdadeiramente amamos a verdade, se estamos prontos para defender nossa fé, não podemos deixar de denunciar os erros e denunciá-los publicamente, como São Paulo, a tempo e contratempo. São Paulo não teve medo de entristecer os coríntios, mas era para levá-los à penitência que eles precisavam. “Contristavi vos ad paenitentiam – Vossa tristeza vos levou à penitência” (2 Cor 7, 9).

O senhor tem uma última palavra que terminaria a nossa entrevista?

Não esqueçamos que a Igreja vive ao ritmo da eternidade. Dom Fellay lembrou-nos de modo muito apropriado: “Dizem-nos: ‘O senhor sabe, hoje o Papa lhes quer bem, mas quem virá depois dele? Ninguém sabe! Então é agora ou nunca que o sr. deve aceitar’. Eu respondi ao cardeal que me fazia esse discurso: ‘Eminência, eu creio no Espírito Santo. Se o Espírito Santo é capaz de iluminar este papa, ele poderá iluminar também o próximo’. E se ele quer-nos bem, talvez o próximo papa nos queira bem ainda mais. Mais uma vez, não se pode discutir a fé, não temos o direito de negociar a fé” (Sermão de Dom Fellay em 15 de agosto de 2008 em Saint Malo, reproduzido no DICI, n º 181.)

A duração da crise pode nos parecer longa, mas a perseverança não implica precisamente certa duração de tempo? Nosso Senhor nos disse: é pela paciência que salvareis as vossas almas (Lc 21, 19). E São Paulo acrescenta que é através da paciência que a nossa esperança deve ser provada (Rm 5, 4).