vs 34 anos da ‘operação suicídio’[1]

Mesmo que, neste ano de 2022, a data não ofereça uma cifra arredondada, como a desses aniversários que se costumam celebrar com maior pompa, a situação presente merece a recordação daquele dia 30 de junho de 1988, em sequência do Motu próprio Traditionis Custodes, de 16 de julho 2021, e das reações suscitadas pelo mesmo nos ambientes do movimento Ecclesia Dei.

De fato, há uma relação íntima entre a existência dos diversos institutos aprovados pela Santa Sé a partir de julho de 1988, conseguintes ao Motu próprio de João Paulo II Ecclesia Dei adflicta, que apresentou o ato da consagração de bispos por Dom Lefebvre como de ‘natureza cismática’, e o último Motu próprio do Papa Francisco, restringindo o uso do missal e do ritual dos sacramentos tradicionais. A partir da data das sagrações episcopais realizadas por Dom Lefebvre, quer o espanto causado pelo fantasma do cisma, quer uma noção equivocada de obediência e comunhão na Igreja, quer, por quê não?, a simples conveniência, uma parte dos Padres e Religiosos, dentro e fora da FSSPX,  que, então, identificavam-se com o combate de Dom Lefebvre pela fé e o culto católicos, afastaram-se da mesma para se beneficiarem das propostas de tolerância que o Papa João Paulo II oferecia.

A dita tolerância tinha e tem ainda hoje como único objeto a liturgia tradicional do rito romano. A aprovação dos novos Institutos implicava, explicita ou implicitamente, um abandono do combate pela fé (que para ser tal não pode não ser de caráter público), em particular em relação àqueles pontos nos quais as doutrinas do Concílio Vaticano II se afastam do Magistério secular da Igreja. Em decorrência disso, o direito ao uso do antigo missal perdeu seu fundamento mais sólido: por motivos de fé, a impossibilidade em consciência de aceitar e celebrar a missa usando o rito aprovado pelo Papa Paulo VI.

A história dos institutos do movimento Ecclesia Dei está toda marcada por este nascimento espúrio, pois a concepção veio da união de um desejo de guardar a Tradição, junto à aceitação de condições inaceitáveis de relativização ou, inclusive, abdicação do combate pela fé.

É preciso lembrar que Traditionis Custodes não rompe nem com Ecclesia Dei adflicta (João Paulo II), nem com Summorum Pontificum (Bento XVI), antes segue coerentemente os mesmos princípios. Se a aprovação – com cautelas e restrições – da celebração da santa missa, seguindo o missal dito de São Pio V, não é mais do que uma tolerância, a fim de facilitar a ‘comunhão eclesial’ para alguns católicos que, em 1988, estavam em risco de aderir ao ‘cisma’ de Dom Lefebvre e hoje à FSSPX por ele fundada, nada impede à autoridade da Igreja revisar e determinar os termos de uso de um missal apenas tolerado como um mal menor.

Atualmente, as consequências na aplicação daqueles princípios talvez se sintam mais do que em anos anteriores. No futuro, provavelmente, só poderão acarretar mais e mais precariedade para os Padres e fiéis vinculados à antiga Comissão Ecclesia Dei. É um suicídio lento que, na expressão de Dom Athanasius Schneider em julho do passado ano, conduziu os ditos institutos ao ‘corredor da morte’, mesmo que Roma não queira determinar datas específicas para o desfecho final[2].

A lição a tirar, diante das atuais evidências, é que não temos como separar, nem nos princípios nem na prática, a lei da oração da lei da fé. Ademais, a palavra ‘fé’ é indissociável da palavra ‘combate’. Ora, de um combate não se pode esperar a vitória sem uma clara identificação do inimigo e sem os alertas para a defesa daquelas pessoas e bens que se pretendem proteger. No caso, o inimigo é o modernismo e o neomodernismo, que inspira há mais de cinquenta anos a pregação, a liturgia e a pastoral da Igreja. Sendo que as ideias são sempre veiculadas pelas pessoas e que, no caso presente, se trata dos próprios pastores da Igreja, encontramo-nos perante pastores com nome próprio; pastores que se tornam inimigos da fé, aos quais devemos resistir, publica e privadamente, com coragem e perseverança. O problema não é, em primeiro lugar, o do acatamento ou não da autoridade. O problema é o da fidelidade à fé, que nos exige, consequentemente, a resistência à autoridade. Aliás, é por amor à autoridade sagrada, por amor à Igreja, representada pelos seus pastores, que somos obrigados a resistir, como tão bem o fez o heroico Dom Lefebvre, nos seus 30 últimos anos de vida[3].

Hoje, a sobrevivência dos movimentos Ecclesia Dei passa por um exame de consciência sobre aquele pecado original de aceitar os princípios do Motu próprio Ecclesia Dei adflicta. Este lhes deu direitos rituais, neutralizando simultaneamente os deveres sacerdotais, apresentando como ilegítima qualquer pregação em defesa da Tradição contra as novidades do Concílio Vaticano II. Porém, a consciência católica não pode aceitar dilemas: é a missa, mas também a fé, a fé inteira, que necessita da denúncia clara dos erros e dos perigos que a ameaçam enfraquecer ou perder; no caso o perigo das teses modernistas do Vaticano II, grandes eixos inspiradores de todos seus documentos. Nas atuais circunstâncias, a consciência católica bem formada não deve temer as ameaças disciplinares, nem os fantasmas de ‘cisma’, nem o rótulo de ‘perda da comunhão eclesial’, sobretudo quando são uma multidão os pastores e fiéis em ‘plena comunhão’ que abandonaram publicamente a fé católica, e inclusive a moral natural. A consciência católica deve aprender a distinção entre obediência e dissimulação; entre obediência e servilidade; entre desobediência e resistência às ordens ilegítimas; entre orgulho e perseverança em defesa dos direitos de Deus. Não existe dialética entre a fé e a obediência, pois a primeira obediência a devemos à fé, cujos direitos são absolutos, e a submissão à autoridade legítima – que é vicária e não absoluta – está condicionada à fidelidade desta à própria fé[4].

Assim falou Dom Marcel Lefebvre naquele sermão histórico da missa de Lille, proibida pelo papa Paulo VI, em 29 agosto de 1976:

“Queridos fiéis, isto não é desacato, antes é uma manifestação de vossa fé católica.

“ […] Acaso o que eu fiz durante trinta anos[5] foi suscetível [de uma sanção de] de suspensão a divinis?… Pelo contrário, penso que se, naquela época, eu tivesse ensinado meus seminaristas como eles são ensinados hoje nos novos seminários, eu teria sido excomungado. Se, naquela época, eu tivesse ensinado catecismo nas escolas, como é ensinado hoje… naquela época, eu teria sido chamado de ‘herege’. E se eu tivesse dito a Santa Missa, como é dita agora, eu teria sido chamado de ‘suspeito de heresia’; eu também teria sido considerado como ‘fora da Igreja’.

“ […] Com toda sinceridade, paz e serenidade não posso contribuir, submetendo-me às suspensões que me foram infligidas e ao fechamento dos meus Seminários, aceitar pôr termo às ordenações. Eu não quero contribuir para a destruição da Igreja. Não quero que na hora da minha morte, quando o Senhor me perguntar: ‘Que fizeste do teu episcopado, que fizeste da tua graça episcopal e sacerdotal?’, precise ouvir da boca de Nosso Senhor: ‘Tu contribuíste para destruir a Igreja, assim como os outros!’.

“ […] Se eu tivesse uma dúvida séria acerca da legitimidade do combate que travo e no qual vos empolgo, diria eu, a combater comigo, acabaria imediatamente. É por estar convencido da necessidade para o bem da Igreja, para continuar a Igreja, de manter esta firmeza na fé, na formação dos sacerdotes, que continuo sem hesitar, apesar das oposições que nos chegam mesmo das autoridades mais altas da Igreja”.

Poucos dias antes, em 22 de agosto, falava nestes termos aos seminaristas de Écône:

“Estamos com dois mil anos de Igreja e não com doze anos de uma nova Igreja, uma ‘Igreja conciliar’, como nos disse Dom Benelli, quando nos pediu que nos submetêssemos à ‘Igreja conciliar’. Eu não conheço esta ‘Igreja conciliar’, só conheço a Igreja Católica. Portanto, devemos permanecer firmes em nossas posições. Por causa de nossa fé, iremos aceitar tudo, todas as dificuldades: quer sejamos desprezados, quer sejamos excomungados, quer sejamos maltratados, quer sejamos perseguidos”.

Enfim, eis umas recentes reflexões do Pe. Jean-Michel Gleize FSSPX, sobre a questão da reivindicação do missal de São Pio V, pretendendo fazer abstração do inevitável debate doutrinal de fundo[6]:

“A Fraternidade São Pio X olha para o chamado Missal de São Pio V, em sua última versão revisada por João XXIII em 1962, como a única legítima expressão do rito católico romano. Ela considera o novo Missal reformado por Paulo VI, não como uma variante legítima e autorizada dessa expressão, não como uma reforma que seja homogênea com a tradição da Igreja, mas como a expressão de uma protestantização deste rito, uma expressão que se afasta de forma impressionante, assim em conjunto como nos detalhes, do conceito tradicional do rito da missa, claramente definido no Concílio de Trento. A gravidade desta deficiência é tal que justifica plenamente a recusa da obediência, perante o que aparece claramente, por parte do Papa, como nada mais do que um abuso de poder prejudicial ao bem comum da Igreja”.

“O pluralismo sonhado pelo Padre de Blignières[7] não satisfaz a Roma nem a Fraternidade São Pio X. Para Roma, isso não é apenas pedir demais, é pedir o impossível, já que é pedir uma pluralidade de ritos, sendo que o uso do Missal Tridentino, embora concedido como um direito particular e próprio para certos institutos religiosos, permanecerá sempre, continuará sempre a ser o uso extraordinário do único rito romano, e nunca se tornará o uso comum de um rito particular na Igreja. Para a Fraternidade de São Pio X, isto não é apenas pedir muito pouco, é pedir o impossível, uma vez que se trata de missais, dos quais apenas um, o Tridentino, é o da lex orandi enquanto o outro, o missal de Paulo VI, não expressa mais esta lex orandi senão de um modo gravemente deficiente, o que o torna uma expressão de sabor protestante, absolutamente inaceitável por princípio”.

“O verão de 1988 foi o momento de uma escolha decisiva, escolha que levou o Arcebispo Lefebvre à decisão de realizar a ‘operação sobrevivência da Tradição’, para evitar a operação suicida. A operação sobrevivência foi, em particular, a da sobrevivência da Missa. Mais de trinta anos depois a Missa ainda sobrevive, aqui e ali, através do ministério dos sacerdotes da Fraternidade São Pio X e, também, em parte, através do ministério dos sacerdotes Ecclesia Dei. Contudo, a diferença é que a Fraternidade tem um episcopado que, por estar livre de qualquer contágio modernista, dá-lhe os meios para perdurar; e, por outro lado, a Missa cuja sobrevivência esse episcopado garante representa a profissão íntegra da fé católica, em oposição aos erros do Concílio Vaticano II, transmitidos na nova liturgia. Por outro lado, os Institutos Ecclesia Dei, dependem de Roma e dos episcopados. A precariedade de sua situação os impede de reivindicar o uso do Missal de 1962 como a expressão da fé e do culto de toda a Igreja, reservada exclusivamente para o missal protestantizado de Paulo VI, restando apenas argumentos fundados no direito dos religiosos e no pluralismo litúrgico. Todavia, o direito reserva o uso do missal verdadeiramente católico para poucos e o pluralismo o torna uma “simples opção”, em comparação ao missal protestantizado, tido como norma comum e universal.

“Entre tal postura e a operação sobrevivência, qual é a melhor estratégia? Acima de tudo, qual estratégia deve se impor à consciência dos católicos? Em outras palavras, até que ponto, até onde devemos ir para resistir a esta protestantização generalizada da Igreja, realizada através do Concílio Vaticano II e da reforma litúrgica de Paulo VI? Ora, a resistência deve ser proporcional à gravidade do perigo. Acaso um dos aspectos essenciais do mesmo perigo não é a ameaça à salvação das almas na Igreja toda? Portanto, não é temerário pensar que a postura acima é tímida demais – além de ser incoerente – e que a operação sobrevivência testemunha a favor da magnanimidade do fundador da Fraternidade São Pio X”.

“A este respeito, o período pós Traditionis Custodes poderia muito bem ser para os institutos Ecclesia Dei a encruzilhada de caminhos. E, por que não, um novo 1988?”.

Ao mesmo tempo que saudamos a clarividência e prudência sobrenaturais de Dom Lefebvre, tão admirado em geral em todos os ambientes de celebração da missa tradicional, mantemos a esperança de que os Superiores dos Institutos do movimento Ecclesia Dei participem daquela clarividência do valoroso prelado e que, sabendo distinguir sabiamente os princípios da prudência sobrenatural, deixem de lado estratégias demasiadamente humanas, e se disponham a resistir tanto quanto precisa e sem dissimulação aos abusos de autoridade dos pastores modernistas por obediência à fé…


[1] Na hora em que encerramos este artigo, chega de Roma um novo documento do Papa Francisco sobre a liturgia: Desiderio desideravi, datado em 29 de junho. Esta Carta apostólica corrobora, na letra e no espírito, o Traditionis Custodes, exigindo uma necessária coerência dos católicos que, oficialmente dizem aceitar o Concílio Vaticano II e, no entanto, se opõem à missa que emanou desse mesmo Concílio: “Seria trivial considerar as tensões, infelizmente presentes ao redor da celebração, como uma simples divergência entre diferentes sensibilidades em relação às formas rituais. A problemática é, acima de tudo, eclesiológica. Eu não entendo como é possível afirmar que se reconhece a validade do Concílio – embora eu me surpreenda que um católico possa dizer que não concorda com ele – e não aceitar a doutrina litúrgica do Sacrosanctum Concilium, um documento que expressa a realidade da liturgia em íntima conexão com a visão da teologia admiravelmente descrita por Lumen Gentium. Por esta razão – como expliquei em minha carta a todos os bispos – senti que era meu dever declarar que ‘os livros litúrgicos promulgados pelos Santos Pontífices Paulo VI e João Paulo II, de acordo com os decretos do Concílio Vaticano II, são a única expressão da lex orandi do rito romano’ (M.P. Traditionis Custodes n. 1)”.

É este o tema central das linhas abaixo escritas.

[2] Igualmente, o Superior da Fraternidade São Pedro na França comentava, sobre Traditionis Custodes: “É uma questão de acompanhamento controlado das últimas pessoas ligadas ao missal de São Pio V, monitoradas de forma terapêutica como nos cuidados paliativos” (site Famille chrétienne, do 17 de julho 2021).

[3] Só para ilustrar, eis um exemplo tirado da entrevista de Dom Marcel Lefebvre com o Cardeal Ratzinger, em 14 de julho de 1987, na qual o purpurado brande a ameaça: “Uma consagração episcopal teria por consequência ‘o cisma e a excomunhão’. O cisma? Replica Monsenhor Lefebvre, se o cisma existe, está bem mais do lado do Vaticano, com Assis e a vossa resposta às Dubia: é a ruptura da Igreja com o seu Magistério tradicional. A Igreja contrária ao seu passado e à sua Tradição, não é a Igreja Católica; por isso que pouco nos importa ser excomungados por esta Igreja liberal, ecumênica, revolucionária”.

[4] “Que Vossa Santidade abandone este nefasto empreendimento de compromisso com as ideias do homem moderno, empreendimento que tem a sua origem nas lojas maçônicas desde antes do Concílio.

Perseverar nesta orientação, é prosseguir a destruição da Igreja. Vossa Santidade compreenderá facilmente que não podemos colaborar num desígnio tão funesto, o que faríamos se consentíssemos no encerramento dos nossos seminários” (Dom Marcel Lefebvre, Carta ao Papa Paulo VI em 17 de julho de 1976).

“Foi para manter intacta a fé do nosso batismo que tivemos de nos opor ao espírito do Vaticano II e às reformas que ele inspirou. O falso ecumenismo, que está na origem de todas as inovações do Concílio, na liturgia, nas novas relações da Igreja e do mundo, na concepção da própria Igreja, conduziu a Igreja à sua ruína e os católicos à apostasia. Radicalmente opostos a esta destruição da nossa fé, e decididos a manter-nos na doutrina e na disciplina tradicional da Igreja, especialmente no que respeita à formação sacerdotal e à vida religiosa, sentimos necessidade absoluta de ter autoridades eclesiásticas que partilhem as nossas preocupações e nos ajudem a nos premunir contra o espírito do Vaticano II e contra o espírito de Assis.

[…] Continuaremos a rezar para que a Roma moderna, infestada de modernismo, torne a ser a Roma católica e reencontre a sua Tradição bimilenária. Então o problema da reconciliação deixará de ter razão de ser, e a Igreja encontrará uma nova juventude” (Carta de Dom Marcel Lefebvre ao Papa João Paulo II em 2 de junho de 1988).

[5] Seus trinta anos de vida missionária, principalmente na África, como Padre e em seguida como arcebispo delegado do Papa Pio XII nos países africanos de língua francesa.

[6] In Courrier de Rome, nº 653, Maio de 2022.

[7] Trata-se do fundador do Instituto São Vicente Ferrer, Louis-Marie de Blignières, « Le pape et le droit propre des religieux » (p. 3-9) et « Note à propos d’un article du Père Henry Donneaud » (p. 101-118) dans Sedes sapientiae n° 159 (primavera 2022).